A notícia percorreu o império de norte para sul, como um rastilho. O novo imperador Huizong (r.1101-1125), um esteta e coleccionador de pinturas e caligrafias, chamava o famoso poeta de volta para a corte. O trajecto do mensageiro descreveu uma cicatriz no espaço imperial chinês, em direcção ao sul. A ferida estava de novo sarada. A ilha de Hainão mais uma vez se revelava não ser suficientemente longe para que aqueles que tinham ouvido falar dele o esquecessem. Tinha 65 anos e sabia que, como sempre, tinha de obedecer. Mas demorava-se, a idade já o permitia. Vagarosamente, desenrolou a pintura.
Cercado por altas montanhas cujos cumes se desvanecem no nevoeiro, num braço de rio, uma minúscula personagem. Pelas vestes identifica-se imediatamente: é um letrado; está sentado num barco e parece pescar. Sim, esse letrado é o mesmo autor da pintura. Ele uma vez esteve lá naquele lugar sozinho, rodeado pelas montanhas, depois foi para casa e pintou com exactidão o que sentiu. É o que se deduz do poema que acompanha a pintura. Ainda antes da assinatura, a caligrafia diz quem ele é. Num outro momento, anos atrás ele, o letrado Su Shi que acaba de ser convocado pelo imperador, esteve ali exilado. E agora, de novo, nota como a pintura e as palavras unidas fazem um só. Na realidade são duas faces da mesma moeda. Talvez tenha alcançado a sua grande ambição: ser como o grande poeta e pintor do tempo dos Tang, Wang Wei de quem ele dizia: “os seus poemas são pinturas e as pinturas são poemas”.
À medida que vai observando a pintura – contida num rolo que se desenrola horizontalmente – como num filme ela vai-se-lhe revelando como um já sonhado sonho antigo. Nota que o homem, tão pequenino, não é de modo nenhum o mais importante nesta pintura. Ele é apenas uma parte daquele microcosmo que corresponde ao grande macrocosmo que os antigos chamavam o Dao. Naquela altura, ele sentia-se sem dúvida em sintonia com todo o mundo que o rodeava. Ao reconhecer esse mundo, executando a sua pintura, não lhe importava tanto imitar o que via mas fazer parte do gesto mesmo da Criação. Ele sabia que “o homem perfeito é aquele que reflecte tudo à sua volta, como num espelho”. Por isso o poema que ele acrescentou à sua poesia diz por outras palavras aquilo que disse uma vez o também escritor e pintor americano Henry Miller: “pintar é amar de novo”.
O Homem de Letras Como Pintor
Sentado no seu pequeno barco, ele parecia pescar. Na verdade o que ele estava a fazer era “amansar o dragão envenenado” – fórmula que os Budistas usavam para se referir à força das paixões do mundo que impedem a iluminação e a sabedoria. Fingindo pescar, ele que era um funcionário e que devia estar a exercer uma função administrativa qualquer, estava a fazer uma afirmação política: de novo discordava da forma como os assuntos do Estado estavam a ser tratados. Por isso isolou-se ali, no rio entre as montanhas. “Quando poderei simplesmente ignorar os enganos de altos e baixos? / Na noite quieta a brisa leve vibra nas ondulações do rio. /A partir de agora desaparecerei com o meu pequeno barco; / Para o resto da minha vida flutuarei sobre o mar.” (Regressando a Lingao à Noite). O exílio era para ele uma forma de vida tão habitual que já por aqueles dias o tinha sublimado, transformando-o numa estratégia. Daí o seu novo nome Su Dongpo, o que significa Su da Encosta Oriental. Na altura em que descobriu este novo nome vivia como um recluso numa pequena aldeia onde, graças a um amigo, o governo distrital lhe cedera quatro hectares de terreno na encosta oriental da montanha que se erguia junto à aldeia. A pobre aldeia, situada no curso médio do rio Changjiang estava bem longe de Kaifeng, a capital dos Song do Norte, onde Su Shi alcançara uma reputação formidável.
Tudo começara muito cedo. Mal Su Shi, nascido em 1036 em Meishan, na actual província de Sichuan, passara juntamente com o seu irmão, o exame de admissão à Função Pública. Iniciara aí, logo em 1057, uma brilhante carreira de funcionário imperial, bem como o seu ambicioso projecto cultural no qual a pintura desempenhava um papel relativamente menor.
Mas agora preocupa-o a pintura. Sentia que algo se estava a completar. E fora aqui que ele representara o Vazio, o outro lado que completa o todo da vida e que está figurado objectiva e subjectivamente na sua pintura. Ele fora a primeira pessoa a descrever esta nova maneira de usar a arte da pintura. Chamara-lhe shiren hua, a pintura dos homens de letras. Comparava-a à arte da elite de composição poética. Dizia que o pintor jamais trabalharia por dinheiro e proclamava a superioridade da obra espontânea sobre a criação laboriosa. O que, se o aproximava das ideias agora em voga, do Budismo Chan, afastava-o de outros pintores seus contemporâneos como Guo Xi.
Bambus de Tinta Vermelha
Tudo na pintura tinha que ser realizado ainda antes de pegar no pincel. Ele não buscava a representação da realidade externa, não procurava a semelhança das formas mas queria capturar o princípio duradouro. Escreve então a sentença que iria perdurar no tempo: “quem julgar uma pintura pela sua semelhança com as formas, mostra apenas o entendimento de uma criança”. Interessava esboçar a ideia – xieyi – não a realidade. Era esse o debate central sobre a arte da sua época no seio da pequena mas influente elite intelectual do seu tempo. E Su Shi tomava partido. Ele fazia parte daquele grupo de homens educados que se reuniam em convívios sociais, muitas vezes no decurso de excursões, em que se praticavam as artes nobres da caligrafia, da poesia e da pintura. Neste contexto de homens cultos reunidos sem qualquer obrigação de produzir arte ou sequer de fazer representações do mundo natural, surgira o ideal da pintura dos homens cultos. Comparavam-se eles próprios com o bambu, que dobra mas não parte. E o bambu tornara-se mesmo um dos seus motivos preferidos. Um dia, de forma surpreendente Su Shi pinta um bambu com tinta vermelha. Perante a surpresa geral, argumenta: será o verdadeiro bambu preto? Então se é verde e é representado a preto, porque não o vermelho no lugar do verde? O que busca a pintura, a essência das coisas ou o seu aspecto exterior? A trouvaille é típica dos homens de espírito da elite cultural. Em pouco tempo os manuais referem esta nova possibilidade de pintar bambus com tinta vermelha. À volta da ideia gera-se um corpo teórico. E de tal maneira que, no início do século XII o “bambu de tinta” era já referenciado em tratados de pintura como um novo ramo separado da arte. Lendas posteriores contam a história da invenção da pintura de bambus no século X pela nobre Dama Li. A verdade é que esta forma de usar o pincel, em que cada folha de bambu é desenhada numa única pincelada, a aproxima da caligrafia. E esta era classificada entre as mais nobres de todas as artes, porque mais capaz de revelar o carácter de uma pessoa. E aqui estava a chave: a educação era mais importante para um pintor do que a sua habilidade manual. O homem que segura o pincel que desenhará a folha de bambu numa única pincelada tem que se concentrar previamente para que se revele o seu carácter moral.
Uma Experiência Mística
A sua actividade, nesse momento que precede a pintura, pode ser comparada com a do místico. Se este busca a união com Deus ou o Absoluto, o pintor busca a harmonia através da união com todas as coisas, ambos encontrando uma fonte de vida mais abundante. Qualquer um dos dois trabalha com os três princípios essenciais da experiência mística: o absoluto, a meditação e a iluminação. Como dizia Zhang Keng: “na pintura o espírito – qiyun – surge a partir das buscas do coração mas nasce através da inspiração do Céu”.
Neste processo o pintor sofre uma mudança importante. O escritor de origem russa Joseph Brodsky dizia que aquilo que amamos nos transforma tão completamente a ponto de modificar a nossa própria identidade e é isso que lhe está a acontecer. Brodsky dizia ainda que o olho não se identifica com o corpo a que pertence mas com o objecto da sua atenção, com aquilo que contempla. Isso explicaria a sua predilecção por aquilo a que chamamos beleza, pois aí o olho pode repousar da hostilidade e da vertigem do mundo. Em vez de “beleza” os pintores dos Song preferiam falar de espírito – qi. E o Vazio era parte desse espírito: “o Vazio é a substância do Dao; a tranquilidade é o terreno do Dao. A razão é a rede do Dao; a consciência é o olho do Dao”, escreveu o Mestre do Armazém Escondido. Su Shi escrevendo sobre o seu mestre Wen Tong (1019-1079): “quando ele pintava um bambu, via o bambu mas não se via a ele. Será suficiente dizer que perdia a consciência de si mesmo? Como em transe, abandonava o seu próprio corpo. Este transformava-se, passando a ser o bambu e criava-se uma frescura infinita.”
Mais tarde, momentos antes de iniciar a pintura, os olhos fechados, Su Shi podia vai ter presente esse instante de união do olho com o espírito. Na prática ele vai utilizar o mesmo método de S. Inácio de Loyola nos seus Exercícios Espirituais: ao meditar sobre as três potências da Alma – memória, entendimento e vontade – ele começa sempre pela “composição vendo o lugar: ver com a vista da imaginação o lugar corpóreo onde se encontra a coisa que se quer contemplar”.
Uma Fonte de Alegria
É nesta altura que ele se prepara “como se fosse receber a visita de uma pessoa importante”. Ele sabe, como escreveu Jing Hao, um letrado Confuciano que também se retiraria de um pequeno cargo após a queda dos Tang, que a pintura deve ser composta tanto de qi – a substância interior, como de hua – a aparência exterior, de forma a delimitar o zhen – a verdade das coisas.
Tranquilo o pintor espera, porque sabe que mais do que exprimir a espontaneidade ou mesmo o seu génio pessoal, ele se vai tornar um instrumento para a expressão da naturalidade do Dao. O que só pode ser atingido sem esforço e fruto da harmonia entre o artista e o espírito universal. A forma como ele “arranjou a casa” para receber essa “visita importante” foi ler “dez mil livros, viajar dez mil quilómetros”, na feliz expressão que mais tarde usaria o pintor e crítico Dong Qichang. De facto, um pintor pode passar a vida inteira a estudar apenas uma flor. Por isso Su Shi não se importa verdadeiramente que o expulsem da capital. Longe das intrigas da corte ele sabe que está mais perto daquilo que é verdadeiramente importante. Em 1080 no decurso de mais um desentendimento com as autoridades, exilara-se num templo Daoísta. O esforço de concentração aí realizado frutificara de tal forma que o leva a confessar: “começo a experimentar uma grande alegria”. E se a unidade interior se lhe apresentava como uma fonte de alegria, manifestá-la era quase uma obrigação. “Escrevo para dar plena expressão ao meu espírito. Pinto para satisfazer a ideia em mim, e é tudo”. E a pintura adequava-se de forma ideal a essa transmissão do espírito: “desde os tempos antigos que os pintores não são homens comuns. A sua maravilhosa intuição da realidade manifesta-se do mesmo modo que a poesia”. Esta era desde sempre, desde o tempo da composição do Livro das Odes, considerada a grande arte. Era a linguagem adequada para comunicar com um amigo.
Mas os amigos também se podiam comunicar por pinturas no decurso de uma visita real. Um dia Su Shi recebe um convite do seu amigo Mi Fu, que acabara de ser nomeado vice-prefeito em Yongqiu. Quando Su chega tudo está preparado para algumas horas daquilo a que Mi Fu chamava moxi, o jogo de tinta. Estão duas mesas preparadas com pincéis e tintas das melhores, trezentas folhas de papel, iguarias e vinho. A reunião das duas extravagantes personagens começa de forma característica. Conta Mi Fu: “quando, então, o vi estava um pouco tocado e disse-me: senhor, deseja colocar este papel na parede? É um papel de Guanyin. Então levantou-se e desenhou dois bambus, uma árvore nua e uma pedra bizarra e entregou-me (a pintura) ”. Por cada taça de vinho, uma folha é preenchida num traço rápido. Quando cai a noite, o papel e o vinho esgotam-se. Os dois amigos trocam as folhas e separam-se. Assim se homenageavam mutuamente.
Nunca Esquecer os Antigos
É certo que o acusam de ser um conservador, porém ele sabe que trabalha com o tempo. Este acabará por lhe dar razão. É assim que muito tempo antes da corte, fugida de Kaifeng, se refugiar em Hangzhou, Su Shi passara já lá duas temporadas, exercendo funções para o governo imperial. Para Wang Anshi, antigo primeiro-ministro que liderou o movimento reformista Novas Políticas até 1076, que o afastaram da corte, Su Shi compõe um dia uma resposta. “Montado num burro, venho de longe para o visitar, / presumo que conserva a saúde que eu lhe conhecia. / Aconselha-me a comprar uma casa junto ao seu portão; / Gostava de seguir o seu conselho, mas vem atrasado dez anos”. Su Shi sabe que na execução do seu trabalho, o mais importante que ele tem que fazer é convocar uma tradição cultural cuja origem se perde na noite dos tempos. Através da comunicação espiritual com os antigos não só se realizava esse mistério da permanente repetição que, séculos depois, viria a intrigar os viajantes do Ocidente como se honrava a sua memória. De acordo com Confúcio “ao expressar a nossa própria individualidade nem por um momento nos podemos esquecer dos antigos”. O efeito extraordinário dessa forma de pensar fez com que através de sucessivas reinterpretações e imaginativas recriações, os grandes temas da longa tradição cultural chinesa permanecessem inteligíveis, geração após geração. O imaginário concreto, expresso no pensamento analógico chinês encontrava nas artes visuais um lugar privilegiado para a sua expressão.
De facto, pode-se falar da pintura chinesa como uma filosofia de vida em acção. Por ela circula toda a linguagem que se encontra no Yi Jing, o Livro das Mutações que regula as relações entre os chamados Três Génios – Tian, Dì, Ren, o Céu, a Terra e o Homem que estão no centro da concepção chinesa do mundo. Para entender como isso funciona na prática regressemos para junto de Su Shi que observa a pintura.
Entender Primeiro, Pintar Depois
Recorda-se do momento que precedeu a pintura. Tinha o espírito liberto e estava em comunhão com o grande Sopro vital. Lembra-se que estava de pé em frente de uma grande mesa, coberta com um tecido espesso o suficiente para absorver as gotas de tinta excessiva que pudessem ter os pincéis. Dispostos ordeiramente sobre a mesa estavam: os pauzinhos de tinta preta, um pequeno frasco com água, um pote ou um suporte cheio de pincéis, pequenos pratos de porcelana para misturar as cores – que ele usava cada vez menos, as mil tonalidades do preto são uma linguagem suficientemente eloquente – uma pedra negra com uma inclinação para misturar os paus de tinta com a água, e finalmente o papel esticado nas pontas por pesos finamente decorados. De resto ele procurava “ter todos estes objectos dos mais preciosos, bem acabados e preciosos com o mesmo apreço que entre nós tem o mais meticuloso capitão ou soldado pelo uso das suas armas”, como observou já no séc. XVII o jesuíta Álvaro Semedo. Os mesmos gestos se repetindo através dos anos.
Sobre o papel, ele dispunha todos os elementos da paisagem que observara, mas nada vai ficar lá ao acaso. Tudo o que integra a pintura terá que estar ligado através das chamadas “veias do dragão”, que estabelecem ligações invisíveis entre os diversos elementos. A linguagem do Yin e do Yang estará presente através da fusão dos opostos porque “apenas pelos opostos conseguimos conhecer alguma coisa pois: a dificuldade e a facilidade completam-se, o pequeno e o grande testam-se mutuamente, e o alto e o baixo determinam-se um ao outro” (Daodejing). O Dao reside nessa tensão. Perceptível logo na determinação do que vai ficar vazio e do que vai ficar cheio. Essas relações dinâmicas podem-se chamar “o Céu e a Terra, aberturas e fechos, o anfitrião e a visita, em subida, em descida, para a frente, para trás”. O importante é que exista uma tal comunhão entre os elementos que para o observador tal visão resulte numa experiência simultaneamente intuitiva e intelectual.
As nuvens, feitas com uma aguada em gradação mostram a perspectiva atmosférica, sugerem a estação do ano em que nos encontramos e são um elemento simbólico fundamental. Elas que são água em estado gasoso, portanto, água que se transformou. Entre a montanha e o rio elas indicam-nos que nada é definitivo. A montanha pode-se transformar em água; a água pode-se transformar em montanha. O fraco pode-se transformar em forte; o forte em fraco. Como Laozi observa no Daodejing a água é a substância mais mole e, no entanto, paradoxalmente, ela é capaz de empurrar a rocha que é a mais dura. Tudo isto, que incarna a ideia de uma pintura ao mesmo tempo estruturada e aberta, o pintor tem que ver primeiro com os olhos da mente. Aplica-se aqui a frase de Italo Calvino: “é preciso que um lugar se transforme numa paisagem interior para que a imaginação comece a habitar esse lugar”. Su Shi antes de começar a pintar fechou, então, os olhos.
A vontade de pintar
E é só agora que ele segura no pincel. Agora é feito o traço no papel. É o Um que separa do Caos de que fala o Daodejing. A pintura tem que ser feita com diligência e isso tem que se notar no final. Nesta altura o seu contemporâneo Guo Xi aconselhava a trabalhar como “defendendo-se de um inimigo poderoso”. Agora as “forças criativas” partilham da fonte do Dao, “o coração acompanha, o pincel executa, selecciona as formas desprovido de dúvidas” (Zheng Hao). Na pintura chinesa não há esboço nem possibilidade de repintar como na pintura a óleo. Tudo é feito numa única jornada. Escreve Su Shi: “Antes de pintar um bambu, que este cresça já dentro de ti. É então que, o pincel na mão, o olhar concentrado, que te podes aperceber da visão exacta e completa que surge à tua frente. Esta visão, agarra-a rapidamente através dos traços do pincel, tão prontamente quanto uma lebre que salta quando o falcão se prepara para mergulhar. Um instante de hesitação e essa visão desaparece”. Ao contrário da pintura ocidental que cria as formas plásticas através da luz e da sombra, Su Shi não conta senão com as possibilidades do próprio traço do pincel. A prática da arte irmã da caligrafia serve-lhe de treino no uso dos seus instrumentos.
Terminado o trabalho específico da pintura Su Shi acrescenta um poema relatando a experiência relacionada com a pintura que tem diante de si. Pode ser por isso uma experiência apenas sonhada. Não é de qualquer modo a redução da pintura a um discurso poético, pois ele sabe que são diferentes expressões artísticas, que no entanto como que se completam. Um tema recorrente nas reflexões de Su Shi sobre o trabalho de pessoas que admirava. Sobre os poemas de Du Fu escreve: “são pinturas invisíveis, e as pinturas de Han Gan são poemas mudos”. Relacionar a pintura e a poesia de resto, é uma ideia que também se encontra na pintura ocidental, embora raramente fossem colocadas lado a lado como na pintura chinesa. O que é uma consequência do uso do pincel na China que é usado indiferentemente para escrever e pintar. Se tal não sucedeu na pintura Europeia, não impediu a associação, pelo menos em termos ideais, entre uma e outra forma de expressão. E isto praticamente desde o seu início. Logo no séc. XVI o português Francisco de Holanda escrevia que “a poesia é mais muda que a pintura”, enquanto Manuel de Faria y Sousa qualificava a pintura como um “falar visível”, ambos fazendo-se eco da célebre expressão de Horácio ut pictura, poesis.
Como se Transmitiu o Espírito
Ao usar a pintura para expressar algo que está para lá das aparências e que no entanto, paradoxalmente, não pode ser expresso a não ser por aparências o pintor-letrado, wenrenhua como virão a ser chamados os que adoptam esta concepção da pintura na China, fazia-o utilizando um suporte frágil. No entanto e curiosamente ele fazia-o na intenção de que a pintura permanecesse no tempo. Por isso Su Shi assina a sua obra e apõe-lhe o seu selo – carimbo pessoal, que era tanto uma forma de acreditação da pintura como um apreciado elemento decorativo. Na era dos Tang (619-960) o prestigio da colecção de obras de arte, levara a que também o coleccionador passasse a colocar o seu carimbo na pintura. Carimbo que podia conter em si mesmo um comentário. Wang Ya, um estadista do tempo do imperador Wenzong (827-841), tinha por exemplo, um carimbo onde se podia ler: “colecção privada permanente de coisas raras”.
O papel ou a seda, suportes tradicionais da pintura não resistiriam à usura do tempo, por isso o engenho e a arte do povo da China criou essa improvável forma de resistência ao tempo que consiste no mistério da permanente repetição. Porque será que algumas ideias resistem no tempo e outras não? O cientista contemporâneo Robert Dawkins ensaiou uma resposta, baseada na teoria de Darwin. Porque canta o pássaro ao pressentir o perigo, quando justamente o seu canto irá alertar um predador, que até então podia nem se ter apercebido da sua presença? Ele põe em risco a sua vida, porém os outros pássaros que estão no bando com ele, salvam-se. O organismo individual morre, no entanto, o gene sobrevive nos outros. Na cultura, o mesmo se daria. Certas ideias, porque mais adaptadas à descrição de um sentimento, impor-se-iam por si próprias.
Su Shi sabe que a sua pintura, provavelmente virá a ser copiada, a caligrafia com o seu nome, imitada. Algum ou alguns anónimos copistas, se encarregarão de a fazer viver ao longo do tempo. É provável que alguns selos de coleccionadores sejam acrescentados à pintura. Uns serão autênticos, outros serão meramente cópias. O que importa, se logo quando ele a pintou sabia que o que estava a fazer não lhe pertencia? Ele foi apenas um veículo através do qual se manifestou o Mistério. Esse que ele reconhecia, talvez acima de todos na obra de Wang Wei. Como confessou um dia, extasiado, ao encontrar num mesmo templo frescos de Wu Daozi e Wang Wei: “Se bem que Wu Daozi seja admirável (como pintor), não se pode falar dele senão como um artista. Quanto a Mojie (nome alternativo de Wang Wei), elevava-se para lá das figuras deste mundo”. Mesmo assim o tempo não se iria esquecer dele. Quando em 1126, os Jurchen invadem o território chinês e ocupam a capital Kaifeng, entre os milhares de componentes da corte imperial levados prisioneiros para o norte, seguiam como tesouros, os manuscritos de Su Shi.
O Estilo de Su Dongpo
Séculos mais tarde Chiang Yee escreveria: “Su foi um homem de Estado, escritor, poeta, pintor e calígrafo da dinastia Song. No seu estilo é possível discernir a carne flácida e as maneiras tranquilas de uma pessoa rechonchuda. A reputação de Su Dongpo como um humorista feliz engendrou o provérbio que diz que se vive mais tempo quando se pratica o estilo de Su Dongpo”. Mas o tempo agora escoava-se. Lá fora, o mensageiro imperial insistia. Su Shi enrolou lentamente a pintura. Teria sido a sua estratégia a mais correcta? O futuro reconhecê-lo-ia como a incarnação de um ideal de pintura na China. Quem se recordaria que após a morte da sua esposa, ele a submetera ao Ritual da Água e Terra da tradição Budista, onde imagens bem diferentes desse ideal eram aceites? Que as suas relações com o poder foram complexas mas nem sempre más? Que importaria que dele não ficasse, como escreveu um poeta Europeu, “nem mármore duro e eterno, / nem música, nem pintura, / senão palavra no tempo”? Ele que conheceu a verdadeira subversão, que soubera examinar a pintura sem se tornar num céptico, palavra que vem do grego skeptikos, derivado de skeptesthai, que significa justamente, examinar, considerar, seria sempre o ideal cultural da elite. Pelo menos tinha dado resposta aos dons que recebera. Ser pintor fora apenas a forma exterior que assumira o seu inexprimível afecto para com o mundo. Não seria isto, suficiente para justificar a vida de um homem?
Su Shi morreu em 1101 quando regressava à corte vindo de Hainão, onde passou os últimos quatro anos de vida, chamado pelo novo imperador Huizong. Terá provavelmente experimentado ao longo da vida, várias vezes, o sentimento da felicidade. Ele que acreditava na felicidade como a descreveu Li Bai: “o canto de uma menina que se afasta, depois de nos perguntar qual o caminho a seguir”. Pouco antes de morrer, já doente, fez uso da sua reputação de homem bem disposto. Escreveu então, num poema para o seu filho: “O solitário Mestre da Encosta Oriental está de cama, doente; / Desordenados cabelos brancos flutuam ao vento como um cobertor de geada. / Vendo a minha cara avermelhada, o meu filho fica contente que eu me encontre bem; / Eu rio, porque ele não sabe que estive a beber vinho”.
