Recontados por Lin Yutang
A protecção pelo livro
O letrado Wu, de Chiang Ling, tinha insultado o mago Chang Chi Shen. Certo de que este iria vingar-se, Wu passou a noite acordado, lendo, à luz da lâmpada, o divino Livro das Mutações.
De repente, ouviu-se um sopro de vento que envolveu a casa e um guerreiro apareceu à porta, ameaçando-o com a sua lança. Wu derrubou-o com o livro. Ao inclinar-se para olhar, viu que não passava de uma figura recortada em papel e guardou-a entre as folhas. Pouco depois, entraram dois pequenos espíritos malignos, de rosto negro e empunhando machados. Também estes, quando Wu os derrubou com o livro, revelaram-se figuras de papel. Wu guardou-as como à primeira.
À meia-noite, uma mulher, chorando e gemendo, bateu à porta. “Sou a mulher de Chang. O meu marido e os meus filhos vieram atacá-lo e o senhor prendeu-os no seu livro. Imploro-lhe que os liberte.
“Nem os seus filhos nem o seu marido estão no meu livro” – respondeu Wu –.
“Só tenho estas figuras de papel.”
“As suas almas estão nessas figuras” – disse a mulher –. “Se não voltarem ao amanhecer, os seus corpos, que jazem em casa, não poderão reviver.”
“Malditos magos!” – gritou Wu. – “Que misericórdia podem esperar? Não pretendo libertá-los. Por pena, devolverei um dos seus filhos, mas não peça mais nada.” E deu-lhe uma das figuras de rosto negro.
No dia seguinte, soube-se que o mago e o seu filho mais velho haviam morrido naquela noite.
As advertências
Um dia, um jovem ajoelhou-se à beira de um rio. Mergulhou os braços na água para refrescar o rosto e ali, na água, viu de repente a imagem da morte.
Levantou-se muito assustado e perguntou: “Mas… o que queres? Eu sou jovem! Por que vieste buscar-me sem avisar?”
“Não vim te buscar” – respondeu a voz da morte. “Acalma-te e volta para casa, porque estou à espera de outra pessoa. Não te virei buscar sem avisar, prometo.”
O jovem entrou em casa muito feliz. Tornou-se homem, casou, teve filhos e seguiu o curso da sua vida tranquila. Um dia de verão, encontrando-se junto ao mesmo rio, parou novamente para se refrescar. E voltou a ver o rosto da morte. Cumprimentou-a e quis levantar-se. Mas uma força manteve-o ajoelhado junto à água. Assustou-se e perguntou: “Mas o que queres?”“É a ti que eu quero” – respondeu a voz da morte. “Hoje vim buscar-te.”
“Tu prometeste que não virias me buscar sem avisar! Não cumpriste a tua promessa!”
“Eu avisei!”
“Avisaste?”
“De mil maneiras. Cada vez que te olhavas no espelho, vias as tuas rugas surgirem, o teu cabelo a ficar branco. Sentias que te faltava o fôlego e que as tuas articulações endureciam. Como podes dizer que não te avisei?” E levou-o para o fundo do rio.
O Julgamento de duas mães (Salomão na China)
Em Yingchuan dois irmãos moravam na mesma casa e suas esposas estavam esperando filhos. A mais velha perdeu o filho logo ao nascer, mas não deixou ninguém saber do facto. Quando a mais nova deu a luz ao seu filho, a mais velha roubou-o a noite e assim questionaram sua posse durante três anos. Quando o caso foi levado ao conhecimento de Huang Pa, Primeiro-Ministro, ele ordenou que a criança fosse colocada a dez passos de distância das duas mães. A um sinal seu as duas mulheres correram para o menino e pareciam dispostas despedaçá-lo de preferência a abandoná-lo. A criança chorava desesperadamente e a mãe receou feri-la, abandonando-a então. A mulher mais velha ficou muito satisfeita ao passo que a mais nova parecia inconsolável. Nesse momento Huang Pa declarou: “A criança é filha da mais jovem”. Processou a mais velha e ela foi, de facto declarada culpada.
(Do Fengshutung, século II)
A Cinderela chinesa
Certa vez, antes de Qin (222-206 a.C.) e Han havia um chefe das cavernas da montanha a quem os nativos chamavam Wu, que se casou com duas mulheres, uma das quais morreu deixando-lhe uma menina chamada Ye Xian. Essa menina era muito inteligente e habilidosa no bordado a ouro e o pai amava-a ternamente, mas quando ele morreu, viu-se maltratada pela madrasta que então a forçava a cortar lenha e a mandava a lugares perigosos para apanhar água em poços profundos.
Um dia, Ye Xian pescou um peixe com mais de duas polegadas de comprimento e que tinha barbatanas vermelhas e olhos dourados. Trouxe-o para casa e pô-lo numa vasilha com água. Cada dia o peixe crescia mais e tanto cresceu que, finalmente, a vasilha não lhe servia mais e a menina soltou-o numa lagoa que havia por trás de sua casa. Ye Xian costumava alimentá-lo com as sobras de sua comida. Quando ela chegava à lagoa, o peixe vinha até a superfície e descansava a cabeça na margem, mas se alguém se aproximasse não aparecia.
Esse hábito curioso foi notado pela madrasta que esperou o peixe sem que este lhe aparecesse. Um dia, lançou mão de astúcia e disse à enteada: “Não está cansada de trabalhar? Quero dar-te uma roupa nova.” De seguida, fez Ye Xian tirar a roupa que vestia e mandou-a a várias centenas de li para trazer água de um poço. A velha, então, pôs o vestido de Ye Xian e escondeu uma faca afiada na manga da blusa. Então, dirigiu-se para a lagoa e chamou o peixe. Quando o peixinho pôs a cabeça fora de água, ela matou-o. Nessa ocasião, o animal já media mais de dez pés de comprimento e, depois de cozido, mostrou ter sabor mil vezes melhor do que qualquer outro. Após a refeição, a madrasta enterrou as suas espinhas num monturo.
No dia seguinte, Ye Xian voltou e, ao aproximar-se da lagoa, verificou que o peixe desaparecera. Correu para chorar escondida no meio do mato. Ali se quedava chorosa quando um homem de cabelo desgrenhado e coberto de andrajos desceu dos céus e consolou-a, dizendo: “Não chores. A tua mãe matou o peixe e enterrou as espinhas num monturo. Vai para casa, leva as espinhas para teu quarto e esconde-as. Tudo o que quiseres pede que te será concedido”. Ye Xian seguiu o conselho e pouco tempo depois tinha uma porção de ouro, de jóias e roupas de tecido tão caro que seriam capazes de deleitar o coração de qualquer donzela.
Na noite de uma festa tradicional chinesa, Ye Xian recebeu ordens para ficar em casa a tomar conta do pomar. Quando a jovem solitária viu que a mãe já ia longe, meteu-se num vestido de seda verde e seguiu-a até o local da festa. A irmã, que a reconhecera, virou-se para a mãe e disse: “Não lhe parece, minha mãe, aquela jovem estranhamente parecida com a minha irmã mais velha ?” A mãe também teve a impressão de a reconhecer. Quando Ye Xian percebeu que a fitavam, correu, mas com tal pressa que perdeu um dos sapatinhos, o qual foi cair nas mãos dos populares.
Quando a mãe voltou para casa encontrou a filha dormindo com os braços ao redor de uma árvore; assim pôs de lado qualquer pensamento que pudesse ter tido acerca da identidade da jovem ricamente vestida.
Ora, perto das cavernas, havia um reino insular chamado To Huan. Por intermédio de um forte exército governava duas vezes doze ilhas e as suas águas territoriais cobriam vários milhares de li. O povo vendeu, entretanto, o sapatinho ao reino To Huan, onde foi ter às mãos do rei. O rei fêz as suas mulheres experimentá-lo, mas o sapatinho era cerca de uma polegada menor dos das que tinham os menores pés. Depois fez com que o experimentassem todas as mulheres do reino sem que nenhuma conseguisse calçá-lo.
O rei, então, suspeitou que o homem que o tinha levado o tivesse obtido por meios mágicos e mandou aprisioná-lo e torturá-lo. Mas o pobre infeliz nada sabia dizer sobre a procedência do sapato. Finalmente, emissários e correios foram enviados pela estrada para irem de casa em casa a fim de prenderem quem quer que tivesse o outro sapatinho. O rei estava muito intrigado.
A casa foi encontrada, bem como Ye Xian . Fizeram-na calçar os sapatinhos e eles couberam perfeitamente. Depois ela apareceu com os sapatinhos e o vestido de seda verde tal qual uma deusa. Mandaram contar o caso ao rei e o rei levou Ye Xian para seu palácio na ilha juntamente com as espinhas do peixe.
Assim que Ye Xian foi levada, a mãe e a irmã foram mortas à pedrada. Os populares apiedaram-se delas, sepultando-as num buraco e erigindo um túmulo a que deram o nome de “Túmulo das Arrependidas”. Passaram a reverenciá-las como espíritos casamenteiros e sempre que alguém lhes pedia uma graça no sentido de arranjar ou ser feliz em negócios de casamento tinha certeza de que sua prece era atendida.
O rei voltou à sua ilha e fêz de Ye Xian a sua primeira esposa. Mas, durante o primeiro ano de seu casamento, ele pediu às espinhas do peixe tantos jades e coisas preciosas que elas se recusaram a conceder-lhe mais desejos. Por isso o rei pegou nas espinhas e enterrou-as bem perto do mar, junto com uma centena de pérolas e uma porção de ouro. Quando os seus soldados se rebelaram contra ele, foi ter ao lugar em que enterrara as espinhas, mas a maré levara-as e nunca mais foram encontradas até hoje. Esta história foi-me contada por um velho servo da minha família, Li Shih-yüan, que descendia de um povo chamado Yungchow e sabia de muitas histórias estranhas do sul.
(Do “Yuyang Tsatsu”, século IX)
A Lenda de Chienniang
Chienniang era filha de Chan Yi, um oficial de Hunan. Tinha um primo chamado Wang Chou, um rapaz inteligente e bonito. Haviam sido criados juntos desde a mais tenra idade e como o seu pai gostava muito do menino tinha dito que faria de Wang Chou o seu genro. Ambos ouviram essa promessa e, porque a menina era a única filha e estavam sempre juntos, a cada dia se afeiçoavam mais um ao outro. Ainda eram dois jovens e continuavam, entretanto, a tratar-se como parentes íntimos. Infelizmente, o pai da jovem era o único que nada percebia. Um dia, um jovem oficial veio pedir-lhe a mão da filha e ignorando, ou esquecendo, sua promessa primitiva, ele consentiu fazendo com que Chienniang, desesperada entre o amor e a piedade filial, quase morresse de dor, causando tal desgosto ao rapaz que ele resolveu sair para outras terras de preferência a ficar ali e ver sua amada tornar-se a esposa de um outro. Assim, inventou um pretexto e informou o tio de que precisava ir para a capital. Como o tio não conseguisse persuadi-lo a ficar, deu-lhe dinheiro e presentes e preparou-lhe um banquete de despedida. Wang Chou, triste por ter de separar-se da amada, pensou na partida durante toda a festa dizendo a si mesmo que era melhor partir do que viver ali vendo seus, sonhos despedaçados.
Assim Wang Chou saiu num barco da tarde e antes de estar a algumas milhas de distância já a noite caíra. Disse ao barqueiro que amarrasse o barco na praia e descansasse durante a noite. Mas não conseguia dormir e, por volta da meia-noite, ouviu passos ligeiros que se aproximavam. Em breve, o som parecia muito perto do barco. Ergueu-se e perguntou: “Quem pode ser a esta hora da noite ?” “Sou eu, Ch’ienniang,” foi a resposta. Surpreso e encantado, levou-a para o barco e ali ela lhe contou que esperara ser sua esposa, que o pai não tinha procedido bem para com ele e que ela não suportava a separação. Receava, outrossim, que ele, só e viajando por terras estranhas, pudesse ser tentado a suicidar-se. Eis porque recaíra na censura da sociedade e na cólera dos pais e o seguiria para onde quer que ele fosse. Assim ambos ficaram satisfeitos e continuaram a viagem juntos para Sichuan.
Passaram-se cinco anos de felicidade e ela presenteou-o com dois filhos. Porém, não tinham notícias da família e diariamente ela pensava nos pais. Era essa a única coisa que lhes atormentava a felicidade. Ela não sabia se os pais ainda viviam e em que condições e, certa noite, começou contou a Wang Chou como se sentia infeliz e, por ser a filha única, como se considerava culpada de grande impiedade filial por ter deixado os velhos pais dessa maneira. “Tens um coração cheio de amor filial e estou de acordo contigo,” disse-lhe o marido. “Já se passaram cinco anos; certamente não nos guardam rancor. Voltemos para casa.” Chienniang exultou ao ouvir isso e assim fizeram todos os preparativos para voltar para casa com os dois filhos.
Quando o barco chegou à cidade natal, Wang Chou disse a Chienniang: “Não sei qual o estado de ânimo dos seus pais. Será melhor que eu vá para verificar.” O seu coração palpitava ao aproximar-se da casa do sogro. Ao vê-lo, Wang Chou ajoelhou-se e pediu perdão; Ao tal ouvir, Chang Yi surpreendeu-se e disse: “De quem esta falando? Chienniang jaz inconsciente na sua cama nesses últimos cinco anos, desde que nos deixaste. Ela jamais abandonou o leito. “Não estou a mentir,” disse Wang Chou. “Ela está bem e espera por mim no barco”.
Chan Yi não sabia o que pensar, por isso, mandou duas servas ver Chienniang. Elas viram-na sentada, bem vestida e feliz e até disse às servas para que dissessem aos seus pais o quanto os amava. Amedrontadas, as duas servas correram para casa a dar estas novas e Chang Yi ficou ainda mais intrigado. Nesse ínterim, aquela que estava na cama ouviu as novidades e parece que a sua enfermidade desapareceu e os olhos brilharam. Levantou-se da cama e vestiu-se, ajeitando-se diante do espelho. Sorrindo e sem proferir uma palavra, encaminhou-se directamente para o barco. A que estava no barco, preparava-se para tomar o caminho de casa e assim encontraram-se nas margens do rio. Quando as duas chegaram perto uma da outra seus corpos confundiram-se num só, com roupas em duplicado, e surgiu a antiga Chienniang tão jovem e encantadora como nunca.
Os pais ficaram satisfeitíssimos, porém pediram aos servos que guardassem segredo e nada dissessem aos vizinhos a respeito do que acontecera, a fim de que não houvesse comentários. Eis porque ninguém, excepto os parentes mais chegados da família Chang, jamais soube deste estranho acontecimento.
Wang Chou e Chienniang viveram como marido e mulher durante mais de quarenta anos antes de morrerem.
(Supõe-se que esta história tenha ocorrido em torno de 690, dinastia Tang)
Sonhos
O chefe do clã Yin, no estado de Chou, possuía muitas terras e os seus servos trabalhavam sem descanso, de sol a sol. Entre eles havia um já velho, cujos músculos estavam exaustos de tanto esforço, mas o chefe do clã continuava a encarregá-lo das tarefas mais difíceis. O velho queixava-se enquanto enfrentava diariamente as suas penas. À noite, dormia como uma pedra, insensível, devido à fadiga, com o espírito muito abatido. E todas as noites sonhava que era o rei daquele lugar, que mandava em todo o povo e que se encarregava de todos os assuntos do Estado. No palácio, ele andava de festa em festa sem nenhuma preocupação e todos os seus desejos eram imediatamente satisfeitos. A sua alegria não tinha limites, mas pela manhã acordava e voltava ao trabalho.
Aos que o queriam consolar pela dureza do seu trabalho, o ancião dizia: “O homem vive cem anos, metade são dias e a outra metade são noites. Durante o dia sou um servo comum e as tribulações da minha vida são como são. Mas à noite sou senhor dos homens e não há maior satisfação. De que posso reclamar?
A mente do chefe do clã estava ocupada com assuntos quotidianos e toda a sua atenção era absorvida pelos problemas da propriedade. Exausto, corpo e mente, também ficava insensível devido à fadiga quando se deitava para dormir.
Mas, noite após noite, sonhava que era um servo que não parava de trabalhar. Era maltratado, desprezado, recebia golpes com um bastão e aguentava tudo o que lhe acontecia. Ele murmurava e reclamava durante o sono e só se acalmava ao amanhecer.
Um dia, apresentou o problema a um amigo, que lhe disse: “A tua situação económica dá-te mais riqueza e honras do que a qualquer outra pessoa. O sonho em que és um servo não é mais do que o ciclo da comodidade e da tribulação; tal tem sido desde sempre a lei da fortuna humana. Como poderiam ser iguais os teus sonhos e a tua vigília?”
O chefe do clã reflectiu sobre a observação do amigo e suavizou as tarefas dos servos. Também reduziu as suas preocupações e, assim, obteve um pouco de consolo nos seus sonhos.
O homem que se tornou um peixe
Era uma vez um homem chamado Kwan, um estudioso que adorava debater filosofia. Um dia, enquanto discutia com um sábio taoísta sobre a natureza da felicidade, ele zombou:
«Você afirma que os peixes são mais felizes do que os humanos? Bobagem! Como você pode saber?»
O taoísta sorriu e disse: «Se duvida, por que não se torna um peixe e vê por si mesmo?»
Antes que Kwan pudesse protestar, o taoísta acenou com a manga — e, de repente, Kwan mergulhou num rio próximo, o seu corpo encolhendo e transformando-se numa carpa!
No início, Kwan ficou apavorado, mas logo descobriu as alegrias de ser um peixe:
Ele podia nadar sem esforço, deixando-se levar pelas correntes frescas.
Ele comia deliciosas plantas aquáticas sem ter de trabalhar como um humano.
Sem impostos, sem pressões sociais — apenas a liberdade da água.
«Ah», pensou ele, «o taoísta estava certo! Esta é a verdadeira felicidade!»
Mas então, uma rede de pescador o prendeu e ele foi puxado para um barco. Enquanto o pescador se preparava alegremente para cozinhá-lo, Kwan entrou em pânico e rezou ao taoísta por ajuda.
No momento em que a faca desceu, ele acordou — de volta à sua forma humana, estendido na margem do rio. O taoísta estava em pé ao seu lado, rindo:
«Bem, a vida de peixe era melhor?»
Kwan, ainda abalado, gaguejou: «A felicidade é relativa… mas prefiro ser um homem com preocupações do que um peixe na frigideira!»
O taoísta acenou com a cabeça: «Agora compreendes. A satisfação não está em fugir da vida, mas em abraçá-la — escamas, redes e tudo o mais.»
O Homem que vendia fantasmas
Sung Tingpo, de Nanyang, era ainda um rapaz quando, num passeio nocturno, deparou com uma fantasma. Perguntou à aparição quem era e ela respondeu que era uma fantasma.
“Quem és tu?”, perguntou por sua vez a fantasma.
Tingpo mentiu e respondeu: “Eu também sou um fantasma.”
A fantasma então quis saber para onde ele ia e Tingpo respondeu-lhe: “Estou a caminho da cidade de Wanshih.”
“Também vou para lá,” afirmou a aparição. E logo se puseram a caminhar juntos.
Após uma milha, se tanto, a fantasma disse que era estupidez andarem tanto quando um podia carregar o outro, por turnos. “Óptima idéia,” ripostou Tingpo.
A fantasma pôs Tingpo às costas e depois de ter andado uma milha disse: “Tu és pesado demais para um fantasma. Tens certeza de que és mesmo um fantasma ?” Tingpo explicou que ainda era um fantasma novo e que, por conseguinte, ainda pesava um pouco. Tingpo, na sua vez, carregou a fantasma, mas ela era tão leve que dava a impressão de não estar a carregar nada.
Assim foram caminhando, revezando-se, até que Tingpo perguntou à companheira qual era a coisa que metia mais medo aos fantasmas. “Os fantasmas têm um medo horrível da saliva humana”, foi a resposta.
Lá foram andando, andando, até que chegaram a um rio. Tingpo deixou que a fantasma fosse adiante e observou que ela não fazia barulho algum ao nadar, mas quando ele entrou no rio, o fantasma ouviu o estalar da água e pediu-lhe uma explicação.
Tingpo explicou novamente: “Não te surpreendas, pois ainda sou muito novo e não estou ainda acostumado a atravessar uma corrente.”
No momento em que se aproximavam da cidade, Tingpo começou a carregar a fantasma nas costas apertando-a fortemente. A fantasma pôs-se a gritar e a chorar lutando para apear-se, porém Tingpo apertou-a com mais força ainda. Ao chegar às ruas da cidade, soltou-a e a fantasma transformou-se num bode. Tingpo cuspiu no animal para que ele não pudesse transformar-se outra vez, vendeu-o por mil e quinhentas sapecas e foi para casa. 完
(Do “Soushenchi”, século IV)
É Maravilhoso ficar bêbado
Ti Xi era um nativo de Chungshan e sabia fazer “vinho de mil dias”, capaz de manter um homem embriagado durante mil dias. Havia um homem no mesmo distrito chamado Xuan Shih que desejou provar o vinho em sua casa. No dia seguinte foi visitar Ti Xi e pediu-lhe um trago; mas este respondeu: “Meu vinho ainda não está completamente fermentado e não ouso oferecê-lo.”
“Quero prová-lo assim mesmo”, disse Xuan. Ti Xi não pôde dizer “não” e deu- lhe um copo. “É delicioso,” observou Xuan, “quero outro copo.”
“Deves ir para casa agora,” replicou Ti Xi. “Volta noutro dia. Só esse copo o embebedará por mil dias.”
Xuan saiu parecendo um tanto tonto e ao chegar em casa morreu sob a influência do vinho. A família nunca desconfiou de nada: chorou-o e enterrou-o.
Após três anos, Ti Xi disse para consigo mesmo – “Xuan a esta hora já deve estar acordado. Preciso ir vê-lo.” Quando chegou à casa de Xuan perguntou se este estava. A família surpreendeu-se muito e disse: “Morreu há muito. Até já tiramos o luto.”
Ti Xi ficou aflito e replicou: “O quê! Foi efeito do meu maravilhoso vinho, capaz de embebedar um homem por mil dias. Ele deve estar a acordar agora mesmo.”
Deu, então, ordens para que a família de Xuan abrisse o sepulcro e o caixão para ver o que tinha acontecido. Ergueu-se uma nuvem de vapores da tumba, nuvem que se elevou até os céus e em seguida procederam a abertura do caixão. Quando a tampa foi retirada, viram o homem “morto” abrir os olhos, bocejar e dizer: “Oh! como é delicioso ficar bêbado!”
Depois perguntou a Ti Xi – “Que vinho é esse que tu fazes? Um só copo produziu esse efeito. Acabo de acordar. Que horas são?”
As pessoas que estavam perto riram muito à custa dele mas, devido a forte exalação da tumba, cheiro intenso que lhes entrou pelas narinas, todos ficaram bêbados por três meses.
(Do “Soushenchi”, século IV)
É bom não ter cabeça
No tempo de Han Wuti (140-87 A. C.), Chia Yung de Qangwu servia como magistrado em Yüchang. Um dia saiu para dar combate a bandidos. Foi ferido e deceparam-lhe a cabeça. Ainda assim, o corpo montou a cavalo e voltou ao campo. Os soldados e o povo que ali estava ficaram admirados e Yung falou pelo peito: “Fui derrotado pelos bandidos e eles cortaram-me a cabeça. Digam-me francamente se é melhor ter cabeça ou ficar sem cabeça ?” Os homens lamentaram-no e disseram: “É melhor ter cabeça.” E Yung replicou: “Não penso assim. Andar sem cabeça também é bom.”
(Do “Luyichi”, século IX)
Como a língua sobreviveu aos dentes
Zhang Zhuang estava doente e Lao Zi veio visitá-lo. Este disse a Zhang Zhuang: “Estás muito doente. Não tens nada que dizer ao teu discípulo?”
“Ainda que não me perguntastes, eu ia dizer-te”, replicou Zhang. “Sabes por que uma pessoa não deve descer do carro quando chega à aldeia?”
“Não significa este costume que as pessoas não devem esquecer sua terra de origem?”, replicou Lao Zi.
“Ah, sim… Mas deixa-me perguntar outra coisa: sabes porque uma pessoa deve correr ao passar debaixo de uma árvore alta?”
“Significa que se deve respeitar os mais velhos”, disse Lao Zi.
“Ah, sim…”, então Zhang Zhuang escancarou a boca e mostrou sua língua para Lao Zi, pedindo que ele olhasse bem lá dentro, dizendo: “o que vês agora?”
“A sua língua, mestre”, disse Lao Zi.
“Os meus dentes estão aí?”, perguntou o velho. “Não”, replicou Lao Zi.
“E sabes porquê?”, perguntou Zhang Zhuang.
“Não durou a língua mais tempo por ser flexível? E não caíram os dentes por serem mais duros?”, retorquiu Lao Zi.
“Ah, sim…”, disse Zhang Zhuang,”acabas de aprender o Dao. Não tenho mais nada te ensinar.
(Liu Xiang)
A Coruja e a Codorniz
Uma coruja em viagem encontrou uma codorniz e esta perguntou: “para onde vais, coruja”? A coruja respondeu: “Vou para Oeste, pois as pessoas da aldeia reclamam muito do meu piar”. Disse-lhe então a codorniz: “aceite uma sugestão: muda o teu pio ou vão-te odiar onde quer que vás”. 完
(Liu Xiang)
