Guo Xi não queria apenas mostrar a beleza de uma paisagem no fim do Inverno. Ele queria provar, na sua pintura amadurecida pela reflexão, como as imagens podem ser a expressão de uma sabedoria. Na Primavera Precoce (Zuo Chun, pág.112), pintura datada de 1072, sente-se quão insignificante é o homem perante a incansável majestade da natureza em turbilhão. Na realidade, dificilmente se distingue a presença do homem na paisagem. O que importa aqui é deixar clara a percepção do súbito despertar da natureza após o longo sono do Inverno. Mas quem é esse homem que é parte de uma paisagem e que, no entanto, se mostra como aquele que percebe o espírito da natureza em acção? De forma característica, produz-se uma comunhão de sentidos em cadeia: esse homem que se identifica com a paisagem é tanto o pintor como a pessoa que se encontra a ver a pintura. Explicando essa sintonia espiritual, o pintor escreveria que o simples facto de “olhar para uma determinada pintura nos altera a disposição, como se realmente estivéssemos naquelas montanhas”.
O título Primavera Precoce introduz-nos silenciosamente no mundo da sua interpretação da imagem. Nele se percebe já um jogo de espírito que nos alerta para um facto inesperado. Até porque a palavra chinesa zao, em zao chun, é a mesma que serve para dizer “bom dia”. Num tratado sobre pintura, intitulado Comentários Sobre Paisagens (Shanshui Xùn), o pintor explica o imenso valor da metáfora do movimento das estações do ano: “As montanhas primaveris rodeiam-se de uma grinalda de nuvens e vapores; aí o homem sente-se feliz. As montanhas de Verão são frondosas e sombreadas; o homem aí está em paz. As montanhas de Outono permanecem serenas no meio da queda das folhas e o homem aí parece grave e solene. As montanhas de Inverno estão pesadas de nuvens sombrias e espessas; o homem sente-se distante e silencioso”. A Primavera Precoce é pois, a expressão de uma emocionante transformação: de distante e silencioso o homem está subitamente feliz.
Um Artista da Corte dos Song do Norte
O pintor que nos facilita esta entrada no espaço da mutação do tempo chama-se Guo Xi (também grafado no Ocidente como Kuo Hsi ou Kouo Hi), nasceu em Wen Xian, na província de Henan cerca de 1020 e é a personificação de um ideal Chinês. Modelo promovido pela corte dos Song do Norte, esse ideal viria nos séculos vindouros a ser reconhecido como estando no centro das preocupações de toda a tradição cultural da China. Poucos, porém significativos, factos são conhecidos da sua biografia. Sabe-se que em 1068 foi chamado para pintar um biombo para o palácio imperial, o que resultou da sua fama como expoente do estilo do aclamado Li Cheng. Note-se que a menção de um pintor ser versado no estilo de um mestre anterior constitui em si mesmo um elogio biográfico. E no entanto, também de modo característico, é nessa altura que recebe já um reconhecimento especial do imperador Shenzong (r.1068-85) pela introdução de um modo inovador na pintura. Serviu sob outros imperadores mas não recebeu honrarias semelhantes. Denotava assim o seu carácter vanguardista, que estaria na origem do posterior ideal romântico que sobre a sua figura se construiu, do artista como um espírito livre. Permaneceu entretanto na corte tornando-se professor assistente (yixue) e Erudito de Artes na Academia de Pintura de Hanlin. Segundo Huang Tingjian no Shangu tiba (Anotações de Huang Tingjian), servia como pintor de serviço (daizhao) quando lhe foi entregue o trabalho de pintar todos os murais da Cidade Proibida dos imperadores Song do Norte. Em 1082 teria pintado quatro murais, descritos como paisagens e pedras gastas, para o templo Confucionista da sua cidade natal de Wen Xian. Em 1085 pintou doze biombos de assunto desconhecido para um monge de Xiansheng Si, o mais importante mosteiro Budista da capital. Perderam-se todos mas são descritos como sendo executados com espontaneidade e vigor. De resto, ele é recordado como sendo extremamente produtivo mas poucas obras restaram desse labor. E o motivo dessa perda pode ser encontrado no suporte em que foram executados. Muitos deles em paredes de estuque de edifícios que acabaram por ser demolidos.
Essas pinturas murais revelam uma curiosa ambiguidade biográfica. Diz-se que eram feitas sobre paredes em bruto a que ele acrescentava gesso de forma casual para obter uma superfície irregular. Seguindo com o pincel os contornos obtidos as pinturas ganhavam uma surpreendente dimensão tridimensional. Porém os registos escritos das suas afirmações vão no sentido contrário. Não falam de espontaneidade mas da atenta observação da natureza. O estilo de um pintor brotaria da compreensão da qualidade essencial, do carácter ou do significado do assunto que tem em mãos. Este seria o modo em que se manifestava o poder do artista de entender e exprimir a realidade espiritual de objectos concretos e naturais. Como o que experimenta o homem subitamente feliz diante da Primavera Precoce.
A Pintura de Paisagem Na China
Esse homem, o que executou a pintura e nós que o acompanhamos, talvez tenha participado no indizível mistério da vida. Era esse o objectivo dos pintores Chineses de paisagem, uma classificação que se cristalizará agora, na época dos Song do Norte. Essa vontade é uma perene ambição humana. Faz parte daquele acervo de ideias que seguem a economia do pensamento de maior simplicidade e de maior capacidade evocativa que encontramos em todas as culturas. Está por exemplo, nos Aranyakas, o Livro da Sabedoria do Bosque, da tradição Hindu mas também numa filósofa tão próxima de nós como Simone Weil (1909-1943). A sua formulação do misticismo do trabalho é particularmente elucidativa. Ela explicava como “o segredo da condição humana reside no desequilíbrio entre o Homem e as forças da natureza, que infinitamente o excedem quando está inactivo. Tal equilíbrio só pode ser alcançado pela acção, através da qual o Homem recria a sua própria vida pelo trabalho”. Não é, portanto, por acaso que estamos diante da execução de uma pintura de paisagem, onde se percebe a natureza e o trabalho de um homem, ambos em acção. Percebe-se mas não se explica uma vez que se trata de exprimir uma espécie de ritmo. O controlo dessa corrente de movimento será, no limite, uma lei que não pode ser formulada, só expressa. Como o cântico dos pássaros. No fundo procura-se fazer interagir o mundo espiritual com o mundo material. No entanto, como ela se revelava crucial, na alusiva escrita chinesa, existiu uma tentativa de capturar essa lei. Ela é a primeira e a mais discutida das Seis Leis da Pintura de Xie He (activo c.500-35), expressos no Gu hua pin lu (Classificação dos Pintores Antigos). Essa lei, fundamental para a tradição chinesa, a qiyun shendong, pode ser traduzida como “Ressonância Espiritual”, o que significa a vitalidade do movimento do espírito através do ritmo das coisas.
A escolha de uma paisagem, como a Primavera Precoce, para servir de veículo a uma ascese espiritual, o que será uma constante na cultura chinesa, conhece aqui o seu momento decisivo, chegava-se ao ponto culminante de uma tradição. A definição de uma estética paisagista está normalmente associada à existência de quatro critérios. Tem que ser expressa por palavras, tem que estar presente na literatura, na pintura, e pressupõe a existência de jardins. Cumprindo os quatro critérios desde a queda dos Han (206 a.C.-220 d.C.), a China é a primeira civilização paisagista do Mundo. Doze séculos antes da Europa, onde só na primeira metade do séc. XVI se aprecia a paisagem como género artístico autónomo, já não dependente das representações religiosas.
É difícil datar precisamente as primeiras representações pictóricas de paisagem na China. Existem certamente elementos paisagísticos nas pinturas murais Budistas das grutas de Dunhuang escavadas possivelmente já a partir do séc. V, e que se diz conterem um caminho secreto, quiçá por imagens, para o paraíso místico de Shambhala. Na literatura descrevem-se outras mais antigas, que se perderam e datariam já do século IV. O que parece certo é que a sua origem está associada a práticas mágico religiosas. Às descrições da terra dos espíritos, do paraíso dos imortais e aos locais onde decorreriam as cenas didácticas que visualizavam os ensinamentos do Budismo e do Daoísmo.
A Magia das Montanhas
As montanhas seriam os locais adequados para fazer evoluir personagens de espírito notável cujas qualidades se espelhariam no ambiente circundante. Não por acaso o próprio carácter que designa o ser celeste, o imortal, é xian, composto pelas palavras que significam homem e montanha. De resto o Shanhai Jing, Canône dos Montes e dos Mares, escrito entre o séc. IV a. C. e o início da nossa era, descreve a vida dos imortais em ilhas montanhosas situadas nos oceanos remotos, longe do império chinês. A tradição tem implicações concretas na vida real. Para alcançar as míticas ilhas são, então, enviadas pelo imperador sucessivas missões que regressam sempre sem resultados. O imperador Wu dos Han (r. 140-87 a. C.) teria feito construir à volta do seu palácio, faustosos jardins com imensos lagos, no meio dos quais foram instaladas ilhas para os imortais, isto é, montanhas de vegetação florescente. Datados dessa altura, podemos observar como até os queimadores de incenso dos Han eram concebidos sob a forma de montanhas, no topo das quais o fumo se elevava, dando-lhes a aparência de cumes enevoados. E, servindo de exemplo para todos os seus súbditos, os imperadores seguiam o ritual de honrar as forças cósmicas (a Terra, o Céu, as Constelações, etc.) escalando uma das cinco montanhas sagradas do império – Taishan no leste (na actual província de Shandong), Hengshan (Hebei) ao norte, Songshan (Henan) no centro, Hengshan (Hunan) ao sul e Huashan (Shaanxi), a montanha do oeste. No cume executavam um acto simbólico para honrar tal ou tal força do universo e, sobretudo, fazer-se legitimar por ela. Na verdade, o reconhecimento era mútuo. O Filho do Céu ia à montanha mostrar-se como tal, afirmando assim a sua capacidade de promover o reencontro do Céu e da Terra. Desde os tempos em que se impõem os ideais de Confúcio (551 a.C.-479 a.C.) que o ritual é seguido fervorosamente. Porque na China não se perdem as motivações mitológicas nas formulações filosóficas e ambas estão presentes na compreensão da pintura de paisagens.
O Carácter do Artista
Tudo isto se torna muito claro porque Guo Xi, o artista modelo dos Song do Norte, tal como o artista moderno, forneceu uma explicação filosófica do seu trabalho. No Linquan Gaozhi (Alta Mensagem sobre Florestas e Nascentes), o conjunto de afirmações que Guo Xi (activo cerca de 1070-1123) terá escutado da boca de seu pai, está bem enfatizado o facto da arte servir como um meio de enobrecer o espírito. O que corresponde à perspectiva Confuciana e tradicional que faz uma associação entre preocupações estéticas e filosóficas. Que consideram o Homem como um ser eminentemente perfeccionável. O cognoscenti que admirasse uma pintura de paisagem seria capaz de reconhecer a vida boa, aquela que revela de perto a beleza amadurecida como sabedoria. Ao terminar o prefácio do tratado onde irá expor as ideias do pai, o filho tem a preocupação de escrever: “ele era rico em carácter interior, em boas acções, em devoção para com parentes e amigos e em caridade para com todos. A isto ele se dedicava e entregava. Estas suas virtudes devem ser conhecidas dos seus descendentes”. A relevância do facto deriva da nova perspectiva que aqui se inaugura, colocando o carácter do artista como o factor decisivo na criação de uma grande obra de arte. Não era uma preocupação nova. É conhecida a frase de Confúcio: “Ao homem de inteligência agrada a água; ao homem de bondade, a montanha. Para um, o movimento. Para o outro, o repouso. O homem de inteligência vive feliz; o homem de bondade vive muitos anos”. A reunião da água e das montanhas, da inteligência e da bondade, porém, está subjacente à existência da pintura de paisagem chinesa. De forma inata, ele sabia que aqui seria o lugar ideal para cultivar o ser. O que exigia qualidades próprias ao pintor, para lá do trabalho específico da pintura. Guo Xi cita no mesmo prefácio o que vem escrito tanto nos Analectos como no Livro dos Ritos de Zhou: “O trabalho da pintura só vem após ter sido feito o trabalho de campo”. Em que consistia esse trabalho de campo? Guo Xi explica o que pensava o seu pai: “Os profanos que nos vêem pegar num pincel e pintar ignoram a dificuldade da pintura. O Zhuangzi fala de um pintor que tira as roupas e se senta de pernas cruzadas; é uma boa maneira de entender um pintor”.
O Pintor Sentado
Referia-se ao que está escrito no capítulo X do Zhuangzi: “O príncipe Yuan tendo manifestado o desejo de possuir uma boa pintura, muitos pintores se apresentaram. Após receber as instruções todos se inclinaram respeitosamente e ficaram ali a alisar os seus pincéis e a desfazer a tinta. Eram tantos que metade teve que ficar lá fora. Foi então que chegou um pintor já fora de horas e completamente à vontade. Tendo recebido as instruções e saudado, ele não permaneceu ali, retirou-se para sua casa. Curioso, o príncipe mandou investigar o que ele estava a fazer. Antes de se meter ao trabalho ele tinha tirado as roupas e nu até à cintura, tinha-se instalado de pernas cruzadas. Quando soube disto, o príncipe teria dito: aqui está um verdadeiro pintor, é este que eu preciso”. De notar que quando o artista Song apresenta esta história como exemplo, mais de mil e 400 anos tinham decorrido desde que fora escrita, o que é um impressionante fio de continuidade ao longo do tempo.
E Guo Xi prossegue na sua caracterização do pintor antes de iniciar o trabalho: “Este, na verdade, deve permitir-se uma total disponibilidade, bem como o desejo feliz de criar. Como se diz; logo que se tenha o coração acalmado e recto, está-se naturalmente receptivo; é então que as variadas expressões dos homens e os múltiplos aspectos das coisas se revelam ao seu espírito e espontaneamente aparecem no seu pincel”. Não é muito diferente do estado de espírito do poeta. “Segundo uma concepção antiga, um poema é uma pintura invisível e uma pintura é um poema visível. Os teóricos de estética dissertaram muito sobre isto; eu também faço minha, essa perspectiva. Muitas vezes, nos meus tempos de ócio, leio poemas dos Jin e dos Tang. Encontro aí belos versos que exprimem coisas que o homem leva no seu foro interior ou descrevem espectáculos que se oferecem aos seus olhos. Contudo, eu não saberia degustar todo o seu sabor se eu não estivesse em paz, sentado diante de uma janela clara à frente de uma mesa própria; se não queimasse antes um pau de incenso para afastar do meu espírito todas as preocupações. O que acabo de dizer é válido também no que toca à minha própria pintura. É só quando tudo está amadurecido em mim, e que o espírito e a mão se respondem sem falhas que eu posso iniciar a minha pintura. Encontro então a justa medida de todos os meus gestos e nunca me encontro desprevenido no decurso da sua execução”. Essa justa medida pressupõe que “a mente do pintor não seja perturbada por centenas de preocupações; o seu espírito deve estar imperturbável e feliz. Num poema de Du Fu essa verdade é revelada”: Pintando apenas um ribeiro em cinco dias, / E apenas uma rocha em dez dias; / Recusando ceder a impulsos e a pressões. / Wang Zai estava, então, pronto para aplicar as suas pinceladas magistrais.
Paisagem de Emoções
“Porque será que um homem virtuoso encontra prazer numa paisagem?”, pergunta Guo Xi no início do Tratado sobre Florestas e Nascentes. E logo a seguir responde: “É por estas razões: é que num ambiente de retiro rústico ele pode educar a sua natureza; aí, no despreocupado jogo de ribeiros e pedras, ele encontra alegria; e é aí no campo, que ele pode constantemente encontrar pescadores, cortadores de lenha e eremitas e observar os altos voos dos grous e escutar os gritos dos macacos”. E ao pintar uma paisagem, o desejo do pintor é semelhante. Não se trata já de simplesmente observar. “Entre as paisagens há umas que são próprias para atravessar, outras adequadas para contemplar, as que são próprias para vadiar e as que são adequadas para habitar. Todas as pinturas podem alcançar estes modelos e entrar na categoria de admiráveis; mas as que são próprias para atravessar ou para contemplar não se comparam às que são adequadas para vadiar ou para viver”, escreve Guo Xi. Ora, criar estas montanhas adequadas para a habitação não só do corpo mas também da mente, exigia uma intensa energia mental e uma disciplina severa. E é disso que falam os textos de Guo Xi. Pela primeira vez de forma sistemática, e no momento em que reconhecem o primado das emoções sobre a mera observação.
É certo que um texto atribuído a Wang Wei (701-761), dos Tang, o Hua Shanshui Fu, falava já de como “ao retratar a paisagem, o pintor deve deixar a emoção conduzir o seu pincel”. O mesmo Wang Wei que já tinha dito: “Eu compreendo a pintura por uma disposição natural, como o grou gemente encontra o seu caminho na noite… o meu amor por paisagens me guia”. Ao contrário no entanto, de todos os artistas dos Tang, de Guo Xi não se sabe que pintasse outro tema que não fossem paisagens. Por isso ele sistematiza a sua elaboração. A sua teoria das três proporções da composição – sanyuan: distância em altura (gaoyuan), em profundidade (shenyuan) e nivelada ao nível do olho (pingyuan), tornar-se-ia essencial na tradição chinesa. Ao iniciar a sua pintura o pintor devia começar por estabelecer hierarquias, a única coisa estável num microcosmo em permanente mutação. Assim uma alta montanha será como um rei rodeado pela sua corte de outras montanhas mais pequenas, o grande pinheiro será um nobre rodeado dos seus criados. A parte mais baixa da composição será a mais próxima do observador e deverá por isso conter alguns detalhes, pelos lados pode haver bolsas de nevoeiro e lugares distantes possibilitam que o olho viaje. Também lhe é atribuída a frase que outros referem como sendo de Wang Wei e que refere a economia da representação pictórica na compreensão do desenho da perspectiva e da figura humana no contexto da paisagem: ao longe os homens não têm olhos/ as árvores não têm ramos, as montanhas/ carecem de pedras e a água não tem ondas. Outras convenções como o simbolismo das cores são referidas de forma definitiva no Linquan Gaozhi. A sistematização do pintor reflectia a social. O imperador Huizong (1100-1125), que por outro lado era um escrupuloso realista e portanto desprezava a nova perspectiva de Guo Xi, havia criado academias específicas para as belas artes. Enquanto nos Tang todas estavam reunidas num Colégio de Ciências e Letras, a Academia Hanlin, Huizong instituiu para a pintura a Hua Yuan, para a caligrafia a Shu Yuan e até uma academia específica para a música.
A Execução de uma Sabedoria
A forma espontânea como deveria emergir a obra é constantemente referida no Linquan gaozhi, numa alusão às práticas Daoístas de criação num estado de semi-transe de que Guo seria um adepto não convencional. É o filho dele que escreve: “é estranho dizê-lo mas o meu pai, que seguia os ensinamentos Daoístas na sua juventude, tinha tendência a abandonar o velho ao acolher o novo e a viver longe da sociedade convencional. Não existia a tradição da pintura na família e apenas o seu talento natural o conduzia a dar rédea solta na esfera da arte e a fazer nome nesse campo”. Ao realizar essa misteriosa vocação Guo Xi respondia ao Confúcio que falava do homem que se podia sempre aperfeiçoar.
O pintor deveria ser um sábio antes de ser um artesão. Por isso aquilo a que chamamos inspiração precedia sempre o gesto. E depois, a ambição do gesto poético do pincel tinha que servir as Três Perfeições – Sanjue: a caligrafia, a pintura e a poesia. Escreve Guo Xi: “Tem sido dito que Wang Xizhi apreciava os gansos por causa dos movimentos livres e graciosos dos seus pescoços, que lhe recordavam a acção de um homem que segura um pincel, e que ao usar o antebraço escreve caracteres perfeitamente. Isto também se aplica ao uso do pincel na pintura. É geralmente certo que as pessoas que são mestres em caligrafia também são mestres em pintura. Ambos praticam o movimento livre e sem hesitações do cotovelo no uso do pincel”. O resultado deve reflectir essa sabedoria. Guo Xi: “Uma vez vi o meu pai pintar um pinheiro situado numa distante área montanhosa. No topo da pintura ele representa imediatamente a continuidade da existência. Em baixo, em primeiro plano, ele colocou um homem velho que na sua pose de acarinhar o pinheiro, olhava para ele ao longe, à distância. Parecia que o homem velho tinha sido colocado ali pelo deus da longevidade”. Já não era mais o conceito de um homem, tal representava o atingir de uma sabedoria só alcançável, de preferência, na solidão das montanhas. Como escreveu Henri Nouwen: “a experiência da solidão permite-nos desmascarar vagarosamente a ilusão da posse e descobrir no centro de nós mesmos que não somos aquilo que podemos conquistar, mas aquilo que nos foi dado”.
A Porta de Wu Daozi
Na expressão tradicional chinesa, espaço e tempo confundem-se nessa experiência da solidão sempre ligada à vida nas montanhas. Tal ligação pode ser encontrada nos mais antigos registos poéticos, como no Livro das Odes (Shijing) de Zhou (1112-256 a.C.):
Dilacerantes são os rochedos, / Oh como são altos! /Estas colinas e estes rios continuam incessantemente. / Parece que não querem terminar.
Ou ainda num célebre poema de Su Dongpo (1036-1101), sobre o Monte Lu:
Daqui dir-se-ia um pico/ Dali, uma cadeia de montanhas, / Vejam-no de cima, vejam-no de baixo, / Nunca é duas vezes o mesmo. / Como é possível que não possamos conhecer/ A forma exacta desta montanha? / É que, ó amigo, é que nós somos/ Os habitantes do Monte Lu.
Do desejo da imersão na montanha fala também a história do desaparecimento do célebre Wu Daozi (activo c.719-c.760). Ao apresentar ao imperador uma pintura de montanhas onde se vê no sopé de uma delas, uma porta fechada à entrada de uma caverna, que ele diz ser habitada por um génio, o pintor convida o soberano a entrar. O Filho do Céu cede a sua vez ao pintor e este entra mas logo a porta se fecha e ele nunca mais será visto, tal como acontecera com o poeta Li Bai quando tentara agarrar a lua reflectida nas águas dum rio. Pablo Picasso dizia: “eu não procuro, encontro”, para o pintor Chinês esta é a hora do encontro, ou mais exactamente do reencontro com algo que ele já viu. Neste processo ele não está a criar um mundo, ele está de novo a criar o mundo. A montanha que o pintor acabou de pintar existe porque é uma montanha real. Sendo pintada não tem menos valor que a outra. De facto, existem várias histórias que constantemente nos relembram o aspecto como que mágico da pintura. Também do tempo dos Tang e tal como Li Bai, um apreciador das virtudes do vinho, conhece-se o caso de Wang Mo, o pintor vagabundo que bebia sempre antes de pintar de modo que por vezes lhe acontecia molhar os seus próprios cabelos na tinta e usá-los como se fossem um pincel. Diz-se que quando morreu o seu caixão era muito leve pois o seu corpo tinha-se transformado numa nuvem. Zhang Sengyou por outro lado, sabia do poder da coisa pintada por isso, sendo um pintor de dragões, abstinha-se sempre de lhes pintar os olhos. Até que, num dia de fraqueza, cedeu aos pedidos do imperador para que terminasse a sua obra. Com grande estrondo e pavor de todos os presentes os dragões tomaram vida e voaram para o Céu.
As histórias que se contam sobre os pintores, a fama de alguns que perdurou na História, criam um espaço de sonho muito próprio da pintura chinesa. A própria ideia que preside à pintura, um espaço onde o tempo se deteve por um instante, reflexo de um tempo entendido como espaço em contínua mutação contribui para essa percepção.
Sonhar um Sonho Antigo
Primavera Precoce é o ponto culminante de uma visão do macrocosmos que se identifica de tal forma com a cultura da China que se disseminou pelas artes decorativas, pelo vestuário dos príncipes e, se não entendida, imediatamente identificável com a China. O grande pioneiro na divulgação da pintura chinesa no Ocidente, o sueco Osvald Sirén referiu-se assim à Primavera Precoce: “os detalhes são minúsculos, as formas e os contornos variam incessantemente mas dividem-se num amplo movimento sinuoso que domina a parte principal da obra; apenas os picos culminantes são rígidos e estáticos. Nenhum dos mestres anteriores teria podido animar assim um motivo desta importância e de uma tal riqueza exuberante, de um ritmo unificador tão contido, e remodela-lo tão livremente segundo uma concepção expressionista”. Graças ao Linquan Gaozhi, podemos ter um vislumbre de explicação das motivações e pensamentos do autor de uma das mais extraordinárias pinturas de paisagem de todos os tempos. Devemo-la ao seu filho que amorosamente no-la transmitiu. O que revela o cumprimento do ideal Confuciano segundo o qual os filhos devem ver os pais como exemplos e fala do espírito presente na natureza, o que sempre disseram os Daoístas.
Após a queda dos Song do Norte, houve quem seguisse os passos de Guo Xi no sul. Sabe-se também que durante algum tempo se estabeleceu uma escola de seguidores do mestre da Primavera Precoce no Sichuan. Porém, a visão romântica com os dinâmicos e inesperados contrastes de luz e sombra que dão corpo à atmosfera fantástica da Primavera Precoce seria rapidamente abandonada pela introdução de outra categoria de apreciação da pintura, dando conta do seu extremo dinamismo neste período.
Vitalidade que, de forma discreta mas não menos apaixonada, continua ainda hoje a fazer homens sonhar com a magia das montanhas. Ou quem sabe, a despertar brevemente nas montanhas, pois como está escrito no Zhuangzi: “Talvez tu e eu estejamos a viver um sonho e ainda não tenhamos acordado”.
