O Sonho da Câmara Vermelha em 10 frases traduzidas e comentadas

O romance O Sonho da Câmara Vermelha , escrito por Cao Xueqin, foi sempre ao longo de todas as épocas um dos livros que mais vendeu. Escrito no séc. XVIII, é considerado uma obra-prima e um dos pontos mais altos da ficção chinesa. A “Vermelhologia” é um campo de estudo dedicado exclusivamente a esta obra. Eu não sou uma vermelhologista, mas coleccionei dez frases para partilhar com os leitores.

 


 

Sê um louco no meio dos loucos
入乡随俗

A história: Quando a nossa jovem heroína Daiyu chega ao palácio dinástico da família Jia, é recebida pela matriarca que lhe pergunta se sabe ler. Daiyu responde-lhe que aprendeu a ler com os Quatro Clássicos de Confúcio. Quis saber se as raparigas da família Jia também tinham aprendido. A matriarca respondeu que as suas raparigas poderiam não ser tão avançadas na leitura, mas que sabiam o suficiente para não serem cegas! Na cena seguinte, o nosso jovem herói Baoyu entra e quer saber quais foram os clássicos que Daiyu leu. Daiyu aceita o desafio e responde prontamente: “Eu não sei ler. Só sei reconhecer algumas palavras.”

O Poder é algo que não deve (não queres) mudar. Por isso esconde os teus talentos.

 

Que sejas um excelente situacionista
伺机而动

Um situacionista é basicamente um oportunista, embora no contexto chinês tenha uma conotação menos negativa.

A história: A poderosa Dama Wang Xifeng acena do alto da colina a uma serviçal, de seu nome Hongyu. Hongyu abandona prontamente a multidão e corre ao encontro de Wang Xifeng. Toda ela é obediência e sorrisos.  A Dama diz: “Hoje a minha criada não me acompanhou. Preciso de alguém que me faça um serviço. Mas como posso saber se estás à altura da missão?” Hongyu responde: “Senhora, estou completamente à sua disposição. Se a desiludir, castigue-me como bem entender!”

As oportunidades são raras. Agarra todas as hipóteses que se te apresentam com prontidão E, com toda a tua alma e as tuas garras.

 

Quando mentir é uma qualidade desejável
避实就虚 

A história: A concubina Zhao está a fazer os preparativos para o funeral do irmão e apercebe-se que uma das criadas não tem as roupas apropriadas. Além disso, a rua onde ela queria ir comprar o fato está toda suja. Então pede a Xueyan, uma serviçal com um cargo elevado, que lhe empreste os trajes adequados. Xueyan recusa-se com estas palavras: “Claro que era óptimo que as suas criadas usassem as minhas roupas, Tia Zhao! Mas as minhas roupas são guardadas por Zijuan (o meu superior), que também precisa da autorização da minha patroa. Não é que eu receie vir a ter problemas. É que a minha patroa está de cama, doente, e não é altura para a preocupar com esse tipo de coisas. Além disso, tenho medo que, se for andar para a frente e para trás para pedir autorização, a vá atrasar quando tem tanta pressa.”

Aprender a recusar é uma via sinuosa. Aparentemente, os chineses apreciam quem sabe contar uma boa mentira. 

 

Fica para sempre junto à cerca (e evita as colisões)
不偏不倚

A poderosa Dama Wang Xifeng está doente. Uma jovem senhora ficou a dirigir a morada dinástica em seu lugar e quer fazer algumas mudanças. Ping Er, a criada de Wang, ficou numa posição desagradável, porque não quer ofender a jovem senhora, mas também não quer ser desleal à sua poderosa patroa.

A estratégia que adoptou foi a de louvar a jovem senhora pelas suas iniciativas. No entanto, ao mesmo tempo foi-lhe dizendo que a sua patroa também já em tempos as queria ter realizado, mas que ficou com dúvidas por razões de muito peso. Desta forma, elogiava a jovem senhora e louvava a sua dama. Voilá, já está bem lançada para a próxima promoção. Quando um dia chegar a chefe, ninguém espere dela uma opinião, porque ela conseguiu lá chegar precisamente por nunca expressou nenhuma.

 

Sê verdadeiro contigo próprio
不忘初心

A história: Miss Yiu é uma mulher apaixonada, ao contrário da irmã mais velha que não se atreve a tomar decisões. Sente-se atraída pelo Sr. Liu e decide esperar por ele o tempo que for preciso.

A certa altura, diz: “O amor não é um jogo de crianças. Também não é um negócio. Eu não sou o tipo de mulher que precisa de escolher um homem para ser feliz. Mas, se dependesse de ti, escolhias o homem mais rico que pudesse conquistar o meu coração. Que desperdício de vida!”

Miss Sexy é uma das mulheres mais memoráveis da câmara vermelha, contando com um total de 500 caracteres.  Ela põe-nos KO!

 

Distribui a tua atenção (igualmente) (e serás recompensado)
一视同仁

A história: A Tia Zhao (segunda mulher do chefe da Dinastia Jia) não cabia em si de contente quando soube que a jovem senhora Baochai tinha enviado presentes ao seu filho. Pertencendo à “segunda divisão”, estava habituada a ser ignorada. Por causa deste pequeno gesto, Baochai conquistou a sua eterna lealdade.

O coração dos que são maltratados é como um tesouro negligenciado, que não lamentamos ter recolhido porque um dia pode fazer-nos falta!

 

Nunca desafies a ordem
安分守己

A história:  Uma anciã que estava a cuidar da fruta quer ter uma conversinha com Xiren, um serviçal de posto elevado, e oferece-lhe um cacho de uvas.  Xiren repreende-a: “As uvas podem ainda não estar maduras, mas, mesmo que estivessem, não estamos autorizados a comê-las antes dos nossos patrões. Oh velha, perdeste o juízo?”

A obediência às regras é uma virtude chinesa tão profundamente enraizada que é praticamente impossível de eliminar. Por pensar nisto; é possível que a revolução cultural do Presidente Mao não tenha sido tão disparatada como pensámos?

 

Não dês nas vistas
八面玲珑

A história: A poderosa Dama Wang Xifeng saúda a jovem senhora Daiyu, acabada de chegar, e elogia-a na presença da matrona, com uma voz emocionada: “É verdade o que os meus olhos vêem? Que bela rapariga, não acredito que pertença à “segunda divisão” (subtilmente lisonjeia a matrona). Parece mesmo uma das raparigas da “primeira divisão” (desta vez lisonjeia a jovem senhora).  Não admira que a nossa matrona esteja sempre a falar de ti. Pobrezinha, a tua mãe morreu tão cedo…” A seguir põe-se a chorar como se estivesse num velório, durante uma cruzada promocional.

A poderosa Dama Wang Xifeng é pura comédia.  Os seus improvisos são como uma taça de noodles, simples instantâneos e funcionais, se não mesmo, completamente originais.

 

Sê louco sempre que puderes
难得糊涂

A história:  A poderosa Dama Wang Xifeng quer agradar à matrona e põe-se a fazer pouco da velha Liu, uma parente humilde que estava de visita. Conseguiu que a matrona e a sua selecta entourage desatassem a rir às bandeiras despregadas. A seguir, Wang pediu desculpa pelo seu comportamento.  A velha Liu desvalorizou a situação: “Não estou zangada contigo. Sou uma prima da província. Não me importo de ser o bobo da festa por uma causa nobre. Podes confiar em mim.”

Que mulher tão esperta! A décima frase é um mistério. Ainda não consegui perceber se é sobre obrigações kármicas – um ponto de vista que os especialistas têm imposto aos leitores– ou sobre desejo sexual ardente. E este último, acho eu, é o motivo pelo qual a ficção clássica chinesa é um trabalho verdadeiramente revolucionário.  Não saiam do vosso lugar.

 

Sou um homem, meu amor!
抱诚守真

Oh, meu deus! Durante este tempo todo, os especialistas estiveram a tentar convencer-nos de que este clássico da literatura falava do amor platónico entre dois adolescentes, o jovem Baoyu e a sua apaixonada Daiyu. Outra teoria que circulava é que a obra abordava o karma. O karma é a experiência, a experiência cria memórias, as memórias criam imaginação e desejo, e o desejo volta a criar o karma. Digamos assim, se comprar um hamburger, isso é karma. O caro leitor passou a ter uma memória que pode dar-lhe o desejo potencial de comprar um Big Mac e entrar no McDonalds – e como os protagonistas são adolescentes, seria o cenário ideal – e lá vem o karma outra vez.

O desejo é o ponto de partida de todas as boas histórias, não é uma virtude, não é um valor, apenas uma nítida pulsão que tudo transcende. E o facto de eu estar a pensar estas coisas é a prova provada de que O Sonho da Câmara Vermelha é uma obra-prima totalmente inovadora, que continua a ser apreciada hoje em dia pelos leitores do mundo inteiro: o autor assumiu que os chineses têm corpo.

E como é que estes corpos se apresentam? Pergunta difícil, sem dúvida.  Vim a descobrir que todas as personagens femininas têm o peito liso e, quando alguma não tem, o autor evita entrar em pormenores sobre a sua anatomia e prefere dissertar sobre outros atributos – o cabelo, as roupas de seda, o seu aroma ou o gosto refinado – ah, e sobre a sua força interior. É também um segredo de Polichinelo que algumas das partes mais sumarentas foram censuradas da edição oficial. Por exemplo, o escaldante caso amoroso entre Keqin e o sogro foi retirado porque o autor o mostrou a um certo “ancião sábio”. Então, o autor passou a relatar com pormenores romanescos a história da censura da sua história, esperando que os leitores pudessem compreender o seu desgosto. Esta foi a parte que eu achei realmente divertida. A partir daqui o autor aprendeu a lição e nunca mais mostrou os seus escritos a ninguém. E desde então as suas heroínas tornaram-se seres sensuais e memoráveis. E isto porque se assemelhavam a mulheres verdadeiras, apesar da sua aparência permanecer um mistério. Apesar disso, toda a sua chama criativa foi dedicada ao protagonista masculino, Baoyu e à descrição do seu corpo e suas expressões. Acredito que, desta forma acidental, O Sonho da Câmara Vermelha libertou as mulheres e os homens chineses.

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