Os contos tradicionais, de cariz oral e popular, constituem uma fonte singular para o acesso à cultura que os produziu. Neles se reflecte a moral, as concepções do mundo, as aspirações e os medos, que subjazem aos comportamentos dos homens. O caso chinês distingue-se, precisamente, pelas mesmas vias que a sua civilização se distingue: a presença constante da moral e a valorização das virtudes filiais, a simplicidade e a adequação à natureza, a irrevocabilidade do destino. Nestes três grupos de valores detectamos a influência confucionista, taoísta e budista, respectivamente. Mas os contos tradicionais, contados e recontados, não se deixam aprisionar totalmente num paradigma. Tal como os provérbios, procuram dizer algo, mas também o seu contrário, pois como na existência humana e nas ideias espelhadas, estas narrativas são percorridos por forças contrárias, opostas mas complementares, capazes nas suas constantes inconstâncias de confundir, baralhar, troçar da mais afinada mente.
Dois contos tradicionais chineses recontados por
Fernanda Dias
Fio Escarlate
Volta a ter orgulho ao atear teu lume
mesmo sozinho na casa vazia
um vermelho sem brilho não te baste
José Tolentino Mendonça,
Teoria da fronteira
Preocupações de um chefe militar
O Governador Militar de Luzhou, de nome Xue Song, teve a dada altura uma serva de nome Hong Xian, cujo significado é Fio Escarlate. Tocadora exímia de cítara de Ruan, também possuía profundos conhecimentos dos clássicos e de história. O governador confiava-lhe a correspondência e a redacção das comunicações, de tal modo que tinha o hábito de se referir a ela como a sua “secretária particular”. Fio Escarlate possuía também, além da cultura, uma intuição singular. Uma vez, por ocasião de uma grande festa na residência, ela abordou Song para comentar: A melodia deste tambor dos bárbaros Jué soa tão melancólica! O tamborileiro deve estar preocupado por algum motivo. Xue Song, que também apreciava música, chamou de parte o homem, que lhe confidenciou ter falecido a esposa na véspera, mas, por precisar de trabalhar, não tinha pedido escusa para fazer o luto. Song logo o dispensou, mandando-o regressar a casa.
Nessa época, as duas margens do Rio Amarelo não tinham ainda recuperado a paz da Era da Suprema Virtude, no dealbar do reino de Suzong, e o exército da Justiça Esclarecida estava acantonado na praça-forte de Fuyang. O governador Xue Song recebera ordem para aí reforçar a sua presença, e reduzir a influência dos rebeldes a Leste da montanha. Dado que o comando tinha também a função de reabilitar os sobreviventes da rebelião, a Corte ordenou a Song que casasse a própria filha com o filho de Tian Chengsi, governador militar de Weibo; e o filho com a filha de Linghu Zhang, governador militar de Huazhou: essas alianças matrimoniais aumentariam o poder das três praças-fortes, que se reforçariam umas às outras, à medida que os nascimentos viessem incrementar os laços de família.
Acontece que o governador Tian sofria de um mal crónico, que se agravava com o vento quente do Verão. Por isso ele costumava dizer que, se fosse possível mudar-se para leste das montanhas, onde se respira ar fresco e puro, a sua vida poderia prolongar-se por mais algumas décadas. Tratou então de recrutar na sua Unidade os homens mais destemidos; reuniu três mil, a quem chamava “os rapazes da minha residência secundária” e a quem tratava com a máxima deferência. Desta ala destacava trezentos homens para a guarda da noite da sua morada, enquanto esperava que fosse determinado um dia propício para se instalar em Luzhon. Quando Xue Song soube disso, pareceu-lhe que estes preparativos belicosos não auguravam nada de bom. Maus presságios o assaltavam, dia e noite, a pontos de falar sozinho, resmungando sabe-se lá o quê, magicando sobre como poderia escapar ao perigo de dissidência da parte do vizinho.
Uma vez, ao entardecer, Song calcorreava os cem passos, fazendo ressoar a bengala nas lajes do pátio do seu pavilhão pessoal, agitando as delicadas peónias nos vasos de faiança. A noite caía e o portal estava já cerrado, quando Fio Escarlate lhe tolheu o passo, dizendo: “Senhor, há um mês que não dorme nem se alimenta convenientemente. Sinto que algo de muito grave o perturba. São as notícias do país vizinho?” Xue Song desabafou: “O assunto comporta grande perigo. Não és tu quem poderá resolvê-lo.” Ao que a jovem replicou: “A minha humilde pessoa, talvez conheça o meio de vos livrar desse tormento, senhor. Não custa experimentar.”
Song contou em então em pormenor do que se tratava e concluiu: “Se eu perder este território que herdei do meu avô, cairiam para sempre em ruína e esquecimento vários séculos de sacrifícios, actos meritórios, e altos favores do Estado! ”
“Senhor, não vale a pena tanta aflição. Deixai-me ir a Weibo para colher informações e ver por mim própria qual a real situação. Se eu me meter ao caminho na primeira hora, estarei de volta na terceira, para receber as vossas instruções. De qualquer modo, esperai o meu regresso.” Fio Escarlate mostrava-se confiante. Song, preocupado, respondeu: “Não te sabia dotada de poderes sobrenaturais. Mas que poderei fazer, se não resultar e te acontece alguma desgraça? ”
“Nada de mal me poderá acontecer durante tão curta viagem”, garantiu ela. Dito isto, entrou nos seus aposentos e preparou-se para partir.
A missão de Fio Escarlate
A bela Hong Xian levantou os cabelos, fez um rolo à moda dos Wuman e prendeu-o com um gancho de ouro em forma de Fénix. Vestiu uma túnica curta bordada a púrpura e enfiou umas sandálias leves, atadas com cordões azuis. Na faixa do peito escondeu um fino punhal ornado de figuras de dragões, e na fronte traçou o nome do deus da Estrela Polar. Fez uma última reverência ao governador, e, num ápice, desapareceu. Xue Song regressou ao seu quarto, fechou os dois batentes da porta, e cheio de apreensão, sentou-me de costas para o lampadário, para meditar na penumbra. Tinha o hábito de beber alguns goles de vinho antes de dormir, mas, naquela noite, ergueu a taça nove vezes, sem sentir embriaguez, e passou a noite em claro.
De madrugada, ouviu gemer o vento vindo dos lados da aurora. Aproximou-se do átrio para averiguar; era Fio Escarlate que regressava, leve e silenciosa como uma folha caindo sobre a relva aljofrada de orvalho. Aliviado por vê-la regressar sã e salva, Xue Song perguntou como tudo se tinha passado.
“De modo nenhum eu poderia falhar a minha missão, disse ela. “Nem morta nem ferida? Inquiriu Song, quase sarcástico.” Ao que a jovem respondeu: “Não chegámos a isso! Contentei-me em trazer como penhor um pequeno cofre em ouro que estava à cabeceira da cama”. E logo narrou a sua extraordinária aventura:
“Cheguei à Sede de Comando de Weibo três quartos de hora antes da meia-noite. Andei por todo o lado sem obstáculos, e depois de ter atravessado várias salas, descobri o quarto de dormir de Tian Chengsi. Ouvia o ressonar dos homens da guarda pessoal dormindo na galeria, soando como fanfarra de trovões. Ouvia os soldados percorrendo as salas em redor do pátio, trocando palavras de ordem sibilantes como a nortada. Empurrei sem ruído o batente esquerdo da porta do quarto, levantei o cortinado do leito, e ali estava o velho Tian, ressonando, encolhido, a cabeça pousada sobre uma pele de rinoceronte pintada, com o toutiço preso numa rede de gaze amarela. Perto do travesseiro cintilava uma espada ornamentada com as sete estrelas da Ursa Maior. Junto da espada jazia escancarado um pequeno cofre em ouro no qual estavam gravados os oitos caracteres cíclicos da sua data de nascimento e o nome do deus da Estrela Polar, o que fazia daquele cofre um objecto mágico de valor pessoal. No interior cintilavam belas pérolas, e em redor pairava um perfume suave. Tian, que fazia gala do seu poder sob os estandartes de comando, e a quem todas as ambições eram permitidas, ali estava, mergulhado nos seus sonhos do Pavilhão das Orquídeas Perfumadas. Pressentiria ele que a sua vida estava à mercê das minhas mãos? Valeria a pena capturá-lo para depois o libertar, feri-lo, ou simplesmente, matá-lo? O tempo passava, a luz das candeias e das tochas retraía-se, os incensários já só continham cinzas. Surgiam por todo o lado guardas armados em profusão. Servas ainda ensonadas encalhavam nos biombos, afastando as cobertas com um último bocejo. Outras, semi-adormecidas, pegando nas toalhas, debandavam em busca de um gabinete de abluções disponível. Retirei as jóias ao comandante, pendentes e alfinetes; atei-lhe o casaco aos calções, tudo isto sem que ele acordasse, como se estivesse desmaiado. Já tinha decidido trazer o cofre. Saí pela Porta do Oeste da cidadela, pronta a percorrer duzentas léguas, quando vi o Terraço de Bronze lá no alto, e as águas do rio Zhang que velavam de bruma o horizonte a nascente. A madrugada tremeluzia sobre a planície, enquanto a lua descia, langorosa, e mergulhava na floresta. Empolgada pela alegria do alvorecer e pela perspectiva de regresso após a incerteza de tamanha aventura, quase esquecia o objectivo da minha missão. Mas, alertada pela gratidão que devo à vossa pessoa, persisti, e assim, depois da terceira hora, percorri em idas e vindas setecentas léguas, pelas cinco cidades daquela região, observando as movimentações de tropas, animada pela esperança de resolver as vossas preocupações.”
Tendo compreendido o plano da sua fiel secretária, Song apressou-se a despachar um cavaleiro com a seguinte mensagem para Tian Chengsi:
A noite passada, um estrangeiro vindo de Weibo veio confessar-me que se tinha apropriado de um cofre em ouro que estava à vossa cabeceira. Não podendo guardar um objecto roubado, e descobrindo pelos motivos esculpidos que se trata de um tesouro pessoal, venho restitui-lo a quem pertence, com os meus respeitos.
Partiu a galope sob as estrelas o mais veloz dos mensageiros do comandante, e chegou ao destino antes da meia-noite. O exército inteiro andava ali numa roda-viva, em grande aflição, procurando o cofre sumido. O enviado bateu ao portal com o cabo do chicote, e solicitou uma audiência urgente. Quando viu Tian, que vinha precipitadamente ao seu encontro, estendeu-lhe de imediato o cofre, e de seguida a carta. Ao lê-la, Tian não cabia em si de comoção e espanto. Nessa noite reteve o mensageiro no seu pavilhão, mandou servir uma ceia de festa em íntima companhia, e cumulou-o de presentes. No dia seguinte, despediu-o, encarregando-o de levar a Xue Song trinta mil cortes de seda, duas centenas de cavalos de raça e outros objectos em conformidade com o que para ele representava o cofre restituído, acompanhados da seguinte mensagem:
Já que eu tive a minha garganta e a minha cabeça à mercê das vossas boas graças, devo reconhecer o meu erro e não vos dar mais cuidados. Considero-me às vossas ordens, assumo os nossos laços de parentesco, e intento colocar-me ao vosso serviço, como o vazio do meio da última roda ao serviço do carro. Não saberia manejar o chicote de cocheiro senão para avançarmos. O serviço de ordem que estabeleci e a que dei o nome de “rapazes da residência secundária” tem como exclusiva intenção proteger o meu domicílio de salteadores e intrusos, e não esconde nenhum outro intuito. Deixemos daqui em diante que eles retirem as suas armaduras e regressem pacificamente aos trabalhos no campo.
Quando, ao fim de alguns meses as relações amistosas entre o Norte e o Sul do rio Amarelo retomaram, Fio Escarlate avisou que ia partir. No momento da despedida Xue Song exclamou, mortificado: “Nasceste na minha casa há dezanove anos! Onde queres tu ir? Sabes que preciso de ti, como podes sequer mencionar que me deixas?”
Um erro na vida passada
Então, serenamente, Hong Xian, a bela Escarlate, fez a seguinte confissão:
“Na minha vida anterior fui um homem, ervanário de profissão. Percorria montes e vales, lagos e ribeiras, colhia ervas medicinais que vendia nos mercados e feiras de cidades e aldeias. Acompanhava-me o Livro de Shennong, o Divino Jardineiro, no intuito de socorrer o povo quando alastravam epidemias e outras doenças. Um dia, quando passava por uma dessas aldeias, trouxeram-me uma mulher no termo da gravidez, que sofria de oclusão intestinal. Tratei-a com uma maceração em vinho de flores de dafne, o tóxico trovisco-louro. A dose que administrei não pode controlar o veneno, do que resultou a morte dos gémeos e da mãe. Responsável por esse triplo assassinato, fui condenado pelo tribunal infernal a renascer mulher! Devia ter nascido numa família vil, mas uma boa estrela fez-me vir ao mundo na vossa casa, onde cresci rodeada de afeição até aos dezanove anos, e onde recebi educação e favores. Felicitemo-nos, porque a Dinastia atingiu o cume do prestígio desde a sua fundação. É preciso agora pôr fim à desordem provocada por aqueles que perturbam a Ordem Celestial. Fui a Weibo para vos dar testemunho da minha gratidão. As muralhas e os fossos dos dois territórios estão daqui em diante protegidos, e a população está em segurança. Inspirar temor a um rebelde e assegurar a paz a um herói, não foi uma tarefa fácil para uma simples mulher como esta vossa serva. Assim resgatei a falta da outra vida. Esse feito permite-me purgar a culpa e restaurar o meu ser original. Poderei então renunciar à poeira do mundo, elevar o meu espírito fora do plano das coisas, purificar o meu sopro, e morar no exterior do ciclo Vida-e-Morte.
“Se ficares,” tentou ainda Xue Song “dou-te mil peças de ouro, para assegurar a tua subsistência num Ermitério.” Ao que Fio Escarlate respondeu: “como poderíamos nesta vida fazer planos para uma vida futura?”
Compreendendo que não conseguiria retê-la, Song mandou servir um banquete de despedida na sala principal. Nessa noite, perante todos os convidados, Song pediu ao poeta Ling Chaoyang para compor um poema, pois queria cantar um dueto com a homenageada, e ouvi-la tocar cítara pela última vez. O poeta escreveu então estes versos:
O canto da apanhadora
de castanhas-de-água
enche de dor a barca
de madeira de magnólia.
Ó torre dos cem passos
onde se dissolve a alma
semelhante ao fim da deusa
da ribeira Luo
na bruma do imenso azul
de águas perpétuas.
Acabada a canção, Xue Song não se coibia de mostrar a sua dor. Fio Escarlate, chorando, fez mais uma vez uma sentida reverência. Saiu da sala do banquete fingindo tropeçar de embriaguez e desapareceu. Hong Xian já não estava em parte alguma.
O escravo Kunlun
Lembrai-vos: os aposentos das mulheres são bem guardados; e terríveis as ordens do rei. — Se isso te impede, mortal tímido, Indra saberá introduzir-te no gineceu.
Stéphane Mallarmé, “Nala e Damaiantî”, Contos Indianos.
A visita ao Príncipe
Durante a Era da Grande-Passagem, a terceira estabelecida pelo Imperador Daizong, um dos magistrados mantinha relações de amizade com o mais ilustre dos servidores do Estado daquele tempo, um Príncipe que ocupava o cargo de Ministro Emérito de Primeira Patente. Este homem de guerra, entre outros feitos, era celebrado por ter reconquistado duas cidades caídas às mãos dos rebeldes capitaneados por An Lushan.
O magistrado, que admirava o Príncipe, tinha um filho, um mancebo de nome Gui, acabado de nomear oficial na Guarda Imperial das Lâminas Cortantes, ala que recrutava jovens da alta aristocracia. Um dia o pai enviou-o a casa do prestigiado ministro, com o intuito de indagar sobre o seu estado de saúde; e talvez também com a esperança de dar a conhecer o talento do filho ao ilustre amigo.
Gui era um belo moço, de rosto puro como o jade, de modos calmos mas decididos, cujo discurso claro e elegante secundava uma natural simpatia e segurança.
Recebido pelo Ministro, este ordenou a uma das suas cantoras que levantasse os estores, e fê-lo entrar nos seus aposentos. O jovem saudou-o com respeitosa vénia, e transmitiu a mensagem do pai. Muito agradado pela presença do visitante, o ilustre Príncipe fê-lo sentar, e logo iniciaram uma interessante conversa.
Uma taça de pêssegos e um enigma
Em frente deles, três favoritas de grande beleza, em volta de uma minúscula mesa, dedicavam-se com extremo cuidado a cortar pêssegos vermelhos em finas fatias, deitá-las em taças de ouro, e regá-las com creme. O ministro ordenou então a uma delas, a que vestia de musselina vermelha, que apresentasse uma das taças ao hóspede. Gui, tão jovem que não sabia como se comportar diante das belas cortesãs, corou embaraçado, não ousando começar a comer. Notando isso, o ministro disse à jovem vestida de vermelho que o servisse com a colher, o que ela fez de imediato, enquanto o olhava com um sorriso malicioso.
Até que chegou o momento de Gui se retirar. Na despedida, ao saudar o ministro, este disse-lhe: “meu jovem amigo, vem visitar-me sempre que tenhas tempo livre; não faças cerimónia com esta idosa pessoa.” E com um gesto, ordenou à favorita de vermelho que o acompanhasse até à saída do pátio. No portal, quando Gui se virou para se despedir, viu que ela levantava três dedos, e depois virava três vezes a palma da mão. Em seguida, tirando do corpete um pequeno espelho redondo, mostrou-lho, repetindo: “ Repara bem! Repara bem!” E logo se retirou para o interior da mansão, sem dizer nem mais uma palavra.
De regresso a casa, o moço contou ao pai como se passara a visita, repetiu os cumprimentos do ministro, e recolheu ao seu gabinete de estudo. Aí se manteve perdido em sonhos, sem dar pelo tempo passar, de espírito ausente, num vazio na alma. Ninguém em casa compreendia o que se passara para ele ter mudado assim. Sem pensar em comer, não fazia mais nada a não ser cantarolar o seguinte poema:
No Monte dos Imortais vi uma deusa
sorrindo com o olhar, estrela cintilante
A lua deslizando pelo portal vermelho
a beleza de neve iluminava tristemente
Durante a dinastia Tang, não raramente famílias abastadas tinham servos oriundos dos Mares do Sul, vulgarmente chamados Escravos Kunlun, em referência aos montes desse nome. Também em casa do pai de Gui havia um escravo Kunlun, de nome Mole, muito devotado ao seu jovem senhor. Nesta ocasião, fitando-o, perguntou: “que tendes no coração que justifique esse ar desalentado? Porque não confias no teu fiel servo?” Ao que Gui respondeu: “Que sabem vocês, para não pararem de me questionar sobre um assunto que diz respeito apenas à intimidade do meu coração? ”
“Quero saber. Tenho fé que conseguirei encontrar uma solução”, retorquiu o servo. Instigado pela inabalável confiança com que o outro argumentava, o jovem oficial contou-lhe o sucedido em casa do ministro, ao despedir-se da bela cortesã vestida de cassa vermelha.
“Só isso? ” comentou Mole “nada de mais! Porque não me contastes logo, em vez de ficar a remorder inquietações?” E de imediato Mole desvendou o mistério da linguagem gestual: “qual a dificuldade de entender a mensagem da bela? Se levantou três dedos, é porque na residência do ministro moram dez cortesãs, cada uma em seu pátio, e ela habita na moradia número três. Virar a palma da mão para cima três vezes, indica quinze dedos, o que aponta para o número quinze, obviamente. Quando ao pequeno espelho redondo que ela mostrou, significa que na noite de quinze, a lua será redonda como aquele espelho.”
Feliz por ver enfim desvendado o mistério dos enigmáticos sinais, Gui perguntou a Mole como poderiam fazer para corresponder ao pedido da jovem. Mole explicou, rindo: “a noite de quinze é amanhã. Preciso de dois cortes de seda azul-escuro, para vos mandar fazer um fato justo. Como na mansão do ministro um cão feroz guarda a entrada do pátio das cantoras, nenhum desconhecido consegue passar. A besta não hesitaria em devorá-lo pois é vigilante como Argos e feroz como um tigre. Trata-se de um animal da raça Menghai de Haizhou; ninguém no mundo, a não ser este vosso servo seria capaz de o dominar. Esta noite vou desancá-lo para vos servir.”
À meia-noite Mole partiu armado de um malhete de correntes. Ao regressar afirmou que o cão estava morto, e que não havia obstáculos à execução do plano. Na noite seguinte Gui gratificou o servo com um excelente repasto de carnes e vinhos finos. À terceira hora, meteram-se a caminho. Gui ia quase invisível, vestido com um fato justo ao corpo, em seda azul-noite.
Voando sobre as muralhas
Ao chegar à muralha da casa do ministro, Mole, carregando o amo às costas, saltou uma dezena de cercas até penetrar no pátio das cantoras e parar em frente da terceira porta. A barra de madeira da fechadura não tinha sido colocada atravessada nos batentes esculpidos em cruzamentos entrelaçados; uma lanterna dourada brilhava suavemente no interior. Os intrusos ouviram os suspiros da jovem, sentada junto da porta, como se esperasse alguém. Tinha retirado os brincos de esmeralda e a pintura carmim do belo rosto. Com a voz repassada de tristeza, também ela sussurrava uma cantilena, afinal tão enigmática como a linguagem das mãos:
Saudoso do seu amor, o rouxinol em pranto
furtivo lhe arrebatou as jóias sob as flores
O azul ainda deserto, a espera sempre vã
em vão a flauta de jade suspira o seu desgosto.
Àquela hora estavam os guardas todos adormecidos. O silêncio da noite pairava sobre o pátio. O moço afastou o cortinado e entrou. Durante um instante, ela ficou sem palavras. Depois acercou-se dele, tomou-lhe as mãos, como para se assegurar que era a pessoa que esperava, e disse:
“ Eu sabia que só um jovem Senhor tão inteligente como tu seria capaz de entender a minha mensagem sem palavras! Mas pergunto a mim mesma de que poderes mágicos dispôs para conseguir chegar até aqui sem entraves.” Gui confessou então que fora Mole a engendrar o plano e pô-lo em prática. Ela riu do fato azul-escuro que moldavas formas do rapaz, e dos saltos sobre as cercas e muralhas, e perguntou: “Onde está esse vosso fiel servo?” Gui apontou o biombo atrás do qual o escravo esperava. A jovem convidou Mole a entrar e serviu-lhe uma taça de vinho. Então narrou a Gui a história da sua curta existência:
“Nasci numa abastada família perto da fronteira do norte. O meu senhor actual, que na altura comandava ali a armada da guarnição, de força me tomou como concubina. Não tive forças para me dar a morte, pelo que vergonhosamente sobrevivi. Agora o pó branco e o carmim da pintura do rosto disfarça o meu coração atribulado de desgosto. Os manjares servidos com pauzinhos de jade, os incensários de ouro onde ardem os mais dispendiosos perfumes, os corta-ventos com incrustações de nácar, as pérolas e as esmeraldas adornando as belas adormecidas sob cobertas bordadas, nada apaga o opróbrio da servidão. Sinto-me em cativeiro. Já que o teu bom servo dispõe de poder sobrenatural, poderá ele libertar-me desta prisão? Dou-vos tudo o que tenho, e se for preciso morrerei sem lamentos; mas seria feliz se pudesse servir-vos como escrava. Diga-me o Senhor o que pode fazer por mim.”
Gui, muito pálido, continuava em silêncio. Mole falou por ele: “Já que está decidida, Senhora, não haverá dificuldades. Vá preparar a sua bagagem, tão rapidamente como possível.” Em grande júbilo ela fez três idas e vindas, empacotando o seu enxoval. Mole avisou: “Vai nascer o sol, apressemo-nos.” Levantou os dois jovens, colocou-os nas suas costas, e voltou a sobrevoar as altas muralhas sem que um só ruído alertasse quem ainda dormia. Já em casa, deixou os dois jovens no gabinete de estudos de Gui, onde este escondeu a moça.
Na mansão do ministro só durante a manhã deram pelo desaparecimento da bela concubina em musselina vermelha, logo depois de terem descoberto o cadáver do cão. “Os nossos muros são altos e vigiados dia e noite, e os portões são fortemente aferrolhados” pensou o príncipe, alarmado. “Não deixaram pistas, como se tivessem voado! Deve ter sido um desses perigosos Justiceiros, aliados dos rebeldes. O melhor é não deixar propalar o sucedido, só serviria para revelar fragilidades da minha casa e atrair inimigos.”
Fuga na primavera
A jovem cortesã ficou escondida nos aposentos de Gui durante dois anos, até que um dia de Primavera, quando estavam em flor as balsaminas, tomou um palanquim e foi passear no Parque dos Meandros do Rio, em Quijiang. Um homem do ministro reconheceu-a de relance e correu a adverti-lo. O ministro, surpreendido, convocou Gui, que não sendo de carácter dissimulado, resolveu não mentir. Contudo, explicou que nada teria sido possível sem a ajuda de Mole.
“A culpa é sem dúvida da rapariga” concluiu o ministro. “Mas como ela se manteve ao vosso serviço durante dois anos, não seria decente retomá-la em minha casa. Contudo, é meu dever punir Mole, pois ele pode constituir um perigo público.”
De imediato ordenou a cinquenta dos seus guardas, armados até aos dentes, que fizessem um apertado à casa de Gui para capturar o escravo Kunlun. Durante essa espectacular diligência houve quem visse o servo Kunlun voar sobre as altas muralhas, de adaga em punho, como se tivesse asas, rápido como um gavião. Debaixo de uma chuva de flechas, sem uma só o ter atingido, desapareceu num abrir e fechar de olhos. Em que direcção e com que destino, ninguém viu. Durante mais de um ano, o ministro, em pânico, rodeou-se de uma guarda especial de soldados armados de sabres e alabardas.
Uma dúzia de anos mais tarde, alguém da família de Gui viu Mole numa tenda do mercado de Luoyang, vendendo drogas, elixires e ervas medicinais. Tinha um ar fresco e folgazão, e o seu rosto estava como sempre fora, inalterado.
